O impasse prossegue

Estados Unidos suspendem contrato de compra de 20 aviões super tucano e, apesar da predileção pelo avião brasileiro, o futuro da licitação las ainda é incerto

Ivan Plavetz Publicado em 23/03/2012, às 11h00 - Atualizado em 27/07/2013, às 18h45

O Super Tucano da Embraer foi exportado para oito países, sendo que cinco deles pertencem à America do Sul e Central

O envolvimento dos Estados Unidos no Afeganistão após os ataques de 11 de setembro de 2001 contra o World Trade Center, em Nova York, a invasão do Iraque em 2003 pelas forças lideradas pelos norte-americanos e a proliferação da guerrilha em várias partes do mundo, notadamente na América do Sul e Central em função do narcotráfico, trouxeram consigo o conceito de guerra assimétrica, uma modalidade de combate que necessita de recursos militares capazes de combater as ameaças de maneira pontual, cirúrgica, persistente e econômica. Para tais missões, os poderosos jatos de combate - incluindo o A-10 Thunderbolt II, o B-1B Lancer, o F-15E Strike Eagle e as versões do F-16 Fighting Falcon otimizadas para missões contra objetivos de solo, todos da USAF, além do novo F/A-18 Super Hornet, as últimas versões do A-4 Skyhawk e os jatos de decolagem e aterrissagem vertical AV-8 Harrier, da US Navy - tornaram-se inadequados e onerosos. Com base nessa experiência, as autoridades militares norte-americanas sentiram necessidade de reempregar em suas frotas aeronaves COIN (Contra Insurgência), usadas durante as décadas de 1960 e 1970, com destaque para o Douglas A-1 Skyraider, o Cessna A-37B Dragonfly, o North American Rockwell OV-10 Bronco, o North American T-28 Trojan e o Cessna O-2 Skymaster. Desta vez, porém, precisariam de máquinas dotadas de tecnologia de ponta. Precisariam, também, lançar programas de desenvolvimento e avaliação de doutrinas de emprego desse tipo de aparelho e de seus respectivos sistemas de missão e armamentos dentro dos cenários de guerra irregular emergentes, e buscar no mercado opções que atendessem às exigências operacionais desses ambientes. Esse é o princípio do imbróglio envolvendo a compra dos Super Tucano pelos Estados Unidos, que teve mais um capítulo em fevereiro último com o cancelamento do contrato por parte dos norte-americanos.

PRIVATIZAÇÃO NAS ARMAS

O AT-6B da Hawker Beechcraft esta ainda em fase de desenvolvimento.

A ideia de buscar soluções militares dirigidas aos combates assimétricos tomou caminhos diferentes, porém, com objetivos comuns. Um deles determinou a "privatização" de algumas atividades sob a responsabilidade do Departamento de Defesa dos Estados Unidos (DoD). Dentro desse processo, durante o ano de 2007, a norte-americana EP Aviation, organização afiliada à atual Xe Services (ex-Blackwater Security), a qual presta serviços para o DoD, foi uma das pioneiras. A empresa adquiriu um Embraer EMB-314 Super Tucano com o objetivo inicial de treinar pessoal e executar avaliações inerentes à doutrina e a táticas de guerra assimétrica visando futuros empregos em missões de apoio aéreo aproximado em teatros de operações como o Iraque e o Afeganistão. A aeronave operou equipada com um FLIR Star Safire III da norte-americana FLIR Systems, sem qualquer outro acessório tático especial.

Posteriormente, em 2009, o exemplar do Super Tucano operado pela EP Aviation foi arrendado para a US Navy e empregado no programa Imminent Fury, planejado pelo Irregular Warfare Office (Escritório de Guerra Irregular), da US Navy. O lançamento do Imminent Fury teve como finalidade avaliar parâmetros com o propósito de adquirir um modelo de aeronave tripulada por um piloto e por um WSO (operador de sensores e sistemas de armas), apta para operar a partir de aeródromos rudimentares e prover apoio aerotático aproximado às Forças Especiais e, adicionalmente, cumprir missões de Inteligência, Vigilância e Reconhecimento (ISR, conforme sigla em inglês). Na Fase I do programa realizou-se uma variada gama de ensaios com o Super Tucano, incluindo lançamento de armas inteligentes. A Fase II previa a aquisição de Super Tucanos adicionais para experimentá-los em ambiente de guerra assimétrica real, contudo, o Imminent Fury não teve continuidade apesar dos bons resultados da Fase I.

PARA CONCORRER NO LAS, A EMBRAER ESTABELECEU PARCERIA COM A SIERRA NEVADA CORPORATION, DE JACKSONVILLE, FLÓRIDA

No mesmo tempo em que a US Navy trabalhava no Imminent Fury, a USAF começou a planejar a adoção do mesmo tipo de aeronave, impelida pela experiência adquirida no Afeganistão. O resultado de suas avaliações acabou por desaguar nos requisitos do Light Attack/Armed Reconnaissance (LAAR) ou Light Air Support (LAS), que visa à seleção de um modelo de aeronave adequada para operações de guerra assimétrica, desempenhando, por exemplo, missões de observação, contraguerrilha e ISR. No início da concorrência, além do Super Tucano e do AT-6B Texan II, da Hawker-Beechcraft, foram examinados o Air Tractor AT-802U, US Aircraft A67 Dragon, Alenia Aermacchi M-346, Pilatus PC-21, além da proposta da Boeing de um OV-10 Bronco atualizado tecnologicamente. O último "shorlist" do LAS elegeu os aviões da Embraer e da Hawker Beechcraft para travar a disputa final.

Para concorrer no LAS, a Embraer estabeleceu parceria com a Sierra Nevada Corporation (SNC), de Jacksonville, Flórida, por força da lei "Buy American Act", a qual exige a participação da indústria do país na produção de equipamentos militares de origem estrangeira, destinados às Forças Armadas dos Estados Unidos. A SNC é o quinto maior fornecedor de soluções logísticas para a USAF, com ampla experiência na área de defesa, apoiando o governo americano. A Tactical Air Defense Services Inc. (DATS), empresa que atua nos setores de defesa e aeroespacial, especializada em prover treinamento militar, operações de reabastecimento em voo e manutenção de aeronaves para as Forças Armadas dos Estados Unidos, passou a deter o leasing do Super Tucano, que se encontrava em operação com a Tactical Air Support Inc. (TacAir). Mediante a concessão do certificado de homologação para o modelo por parte da Administração Federal de Aviação (FAA) dos Estados Unidos em outubro de 2011, a DATS passou a demonstrar o Super Tucano em bases aéreas militares do país.

A Hawker Beechcraft se associou à Lockheed Martin no LAS para desenvolver o AT-6B, variante armada do treinador T-6A Texan II em serviço na USAF e US Navy desde 2000/2001.

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Entre os dois finalistas do LAS, o Super Tucano da Embraer é o único modelo provado em missões de combate real. Na imagem, o A-29 da FAB bombardeia com precisão uma pista clandestina. Foto FAB/ CB Silva Lopes.

SUPER TUCANO VERSUS AT-6B
O Super Tucano nasceu de uma iniciativa efetivada a partir de 1988 que teve por objetivo aproveitar as excelentes características do projeto do Embraer EMB-312 Tucano (T-27) para desenvolver um aparelho mais potente e otimizado para combate, cujo demonstrador de conceito recebeu a designação inicial EMB-312H. Entre as modificações mais importantes estava a instalação de um motor Pratt & Whitney PT-6A-67R, de 1.600 HP. O programa tomou impulso exatamente com vistas à concorrência Joint Primary Aircraft Training System (JPTAS) destinada a escolher um treinador primário para a USAF e a US Navy. Para disputá-la, a Embraer associou-se à norte-americana Northrop Grumman e construiu dois protótipos designados EMB-314HJ para voos de demonstração e avaliação. O modelo da Embraer perdeu para o T-6A, adversário do T-27 em várias concorrências vencidas pelo treinador brasileiro.

O projeto do EMB-312H evoluiu a partir de 1995 para o ALX especificado pela Força Aérea Brasileira (FAB), a qual o usaria mais tarde sob a designação A-29A (monoplace) e A-29B (biplace) como braço armado do Sistema de Vigilância da Amazônia (SIVAM) em conjunto com o CINDACTA IV e os aviões de alerta antecipado E-99. O ALX foi objeto de interesse da Organização do Tratado Atlântico Norte (OTAN) que procurava um treinador turbo-hélice para o Nato Flying Training in Canada (NFTC), sediado no Canadá, cujo resultado da licitação contemplou o T-6A, denominado pelos canadenses de CT-156 Harvard II, mesmo sendo o Super Tucano preferido pela Canadian Armed Forces (CAF). A perda desse contrato foi um mero casuísmo político-industrial provocado por uma disputa entre a Embraer e a canadense Bombardier no mercado de jatos regionais.

Em termos de comparação entre os dois finalistas do LAS, os defensores do Super Tucano da Embraer asseguram que o modelo coleciona mais qualidades. A aeronave incorpora uma avançada arquitetura de sistemas de missão, que inclui cockpit digital compatível com NVG (óculos de visão noturna) dotado de duas ou três telas MFD de 6 x 8 polegadas no painel frontal, HUD (visor de cabeça erguida), UFCP (painel de inserção de dados na altura da cabeça) HMD (visor montado no capacete), FLIR e telêmetro laser (Laser rangefinder) opcionais, bem como sistemas de autodefesa, computadores que calculam com precisão pontos de lançamento e impacto de bombas, datalink e sistema de navegação inercial/GPS. A operação dos Super Tucanos é apoiada por estações de superfície computadorizadas do TOSS (Training and Operation Support System) e um FS (Flight Simulator) no estado da arte. Como suporte operacional pós-venda, a Embraer disponibiliza para o usuário do Super Tucano o pacote CLS (Contractor Logistics Support). Em termos de armamento, o avião da Embraer é capaz de levar mais de 1.500 kg de cargas de missão distribuídas nos cinco pilones externos, como bombas guiadas a laser, foguetes, mísseis ar-ar, pods de reconhecimento e tanques de combustível sobressalentes.

A COLÔMBIA FOI O PRIMEIRO CLIENTE DE EXPORTAÇÃO DO SUPER TUCANO E O PRIMEIRO A USÁ-LO EM MISSÕES DE COMBATE REAL

A US Navy ensaiou o Super Tucano durante o programa Imminent Fury com vistas a comprovar a qualidade do avião brasileiro em guerra irregular

Enquanto o AT-6B ainda passa por baterias de ensaios, o Super Tucano já foi vendido para oito países, tendo a Embraer acumulado uma carteira de encomenda de mais de 180 unidades. A frota em operação ultrapassou a marca de 130 mil horas voadas, das quais 18 mil em missões de combate real. A Força Aérea da Colômbia (FAC), por exemplo, já utilizou seus Super Tucanos por diversas vezes contra as FARC, tendo essas aeronaves sido equipadas com pods de navegação e designação de alvos para bombas inteligentes, entre elas, as GBU-12 e Griffin de procedência israelense. Além das rotineiras missões de interceptação de aeronaves suspeitas voando no espaço aéreo brasileiro, a FAB utilizou recentemente seus A-29 nas Operações Ágata, destruindo com eles pistas de pouso clandestinas na Amazônia.

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A fabricante do AT-6B e seus aliados no LAS argumentam que o modelo atende aos requisitos da concorrência, apresentando performances de voo e bélicas compatíveis com aquelas oferecidas pelo Super Tucano, incluindo a capacidade de lançamento de armas, quesito já ensaiado com a assessoria de pilotos da USAF e Guarda Aérea Nacional. No tocante a apoio operacional baseado em terra, a divisão norte-americana da CAE ficou encarregada de desenvolver as estações computadorizadas, incluindo simulador. Contudo, não há até o momento comprovação clara (ou pelo menos divulgação desta) da validação operacional efetiva dessa aeronave dentro das especificações do LAS. O AT-6B é descendente de uma linhagem de treinadores que começou na Suíça, com o turboélice Pilatus PC-7, produzido a partir de 1978 e exportado para mais de 20 países. O PC-7 evoluiu para o PC-9, o qual incorporou dois assentos ejetáveis dispostos em tandem, seguindo níveis diferentes para melhorar a visibilidade do tripulante de trás, e freio aerodinâmico ventral, além de um motor mais potente. Modificado especialmente para concorrer no JPATS e designado T-6A Texan II nos Estados Unidos, o modelo passou a ser fabricado inicialmente pela Raytheon e compõe atualmente a espinha dorsal da aviação de treinamento da USAF e US Navy nos programas de treinamento primário e intermediário. Para alguns analistas, o fato de ser totalmente produzido nos Estados Unidos por uma tradicional empresa local constitui um importante ponto a favor do AT-6B, principalmente ao se considerar o típico nacionalismo norte-americano e a atual conjuntura pela qual passa o país. Algumas fontes classificadas dos Estados Unidos comentaram nos últimos dias que a seleção do avião da Hawker Beechcraft ajudaria a manter cerca de 1.400 empregos dentro e fora da empresa. Um aspecto técnico de peso em favor do AT-6B fica por conta dos custos de logística, já que há uma estreita comunalidade de peças e serviços entre esse novo modelo e o T-6A.

VENCEDOR E DERROTADO

Super Tucano usado como plataforma de ensaios no programa Imminent Fury carregado com bomba guiada a laser GBU-12

Confirmando rumores que antecederam o anúncio do vencedor do LAS, o dia 30 de dezembro de 2011 marcou a divulgação de que o Super Tucano da Embraer havia sido o escolhido. Eliminada pela USAF mesmo antes de terminar oficialmente a competição, a Hawker Beechcraft entrou na justiça no início de janeiro último com uma ação contestatória do resultado. Decorridos quase dois meses da apelação da derrotada, a USAF informou no dia 28 de fevereiro que está "colocando de lado" o contrato de US$ 355 milhões correspondente à compra de 20 aeronaves EMB-314 Super Tucano da Embraer para serem repassados para o Corpo Aéreo do Exército Nacional do Afeganistão. Segundo comunicados oficiais, o motivo para a tomada dessa decisão de cancelamento está relacionado com problemas detectados na documentação que levou à opção pelo avião brasileiro. Na ocasião, o comandante da área de materiais da USAF, Donald Hoffman, ordenou uma investigação.

Surpreendida pela notícia, a Embraer emitiu nota lamentando o cancelamento do contrato referente ao projeto LAS. O conteúdo do comunicado esclareceu que a Embraer e sua parceira norte-americana na contenda, a SNC, participaram do processo de seleção disponibilizando, sem exceção e no prazo próprio, toda a documentação requerida. O texto dizia ainda que a decisão a favor do Super Tucano divulgada pela USAF foi pelo melhor produto, com desempenho em ação já comprovado e capaz de atender com maior eficiência às demandas apresentadas pelo cliente. A Embraer informou, ainda, que permanecerá firme em seu propósito de oferecer a melhor solução para a USAF e aguardará mais esclarecimentos sobre o assunto para, junto com sua parceira, SNC, decidir os próximos passos.

Alguns especialistas já contavam com uma eventualidade desse tipo, pois não é a primeira vez que um produto militar de qualidade superior desenvolvido e fabricado fora dos Estados Unidos sucumbe após ser declarado vencedor de uma concorrência naquele país. Em 2004, por exemplo, a Embraer chegou a anunciar o início da construção de uma fábrica nos Estados Unidos onde planejava desenvolver programas de defesa e segurança nacional. O primeiro projeto da unidade seria o programa Aerial Common Sensor (ACS), do Exército dos Estados Unidos (US Army), que inicialmente escolheu a plataforma do jato regional Embraer 145 como parte da implantação de um sistema de nova geração para vigilância de batalha. Na época, a Embraer estabeleceu parceria com a Lockheed Martin, líder do projeto; no entanto, o ACS não foi adiante.

Acredita-se que a retomada do LAS, caso ele conserve sua atual forma, aconteça somente após as eleições presidenciais de novembro nos Estados Unidos, sendo que antes disso deverá acontecer um minucioso processo de reavaliação do projeto, além da esperada elucidação dos motivos que levaram ao seu cancelamento. Estima-se que esse hiato poderá favorecer a proposta da Hawker Beechcraft, dando tempo para que ela supere com sucesso a fase de desenvolvimento, maturação e validação de sua plataforma.

A ESCOLHA DO SUPER TUCANO
COMO A MORTE DO RAUL REYES, LÍDER GUERRILHEIRO COLOMBIANO, LEVOU A USAF A OPTAR PELO AVIÃO CONCEBIDO PELA EMBRAER

Um dos fatores técnicos que pesaram a favor do Super Tucano na licitação LAS é que o avião brasileiro foi projetado para cumprir missões COIN (COnter INsurgency) em regiões de clima quente e ao nível do solo (como a Amazônia), por especificação da FAB. Por esse motivo a aeronave tem asas de perfil adequado para boa manobrabilidade a baixa altura. Ao contrário do Texan II, que foi concebido como avião de treinamento na Suíça (é uma adaptação do Pilatus PC.9), onde voos de alto desempenho a altitudes maiores (em razão das montanhas do país) dão a ele desempenho inferior a baixas alturas e velocidades menores. Também pesou a favor do Super Tucano o fato de ter tanto armamento fixo (metralhadoras de 12,7 mm) embutido nas asas quanto região da cabine protegida por blindagem balística capaz de deter projéteis até calibre .50. Mas o que realmente influenciou foi o seu desempenho em combate: em 2007, a Embraer vendeu 25 desses aviões à Força Aérea da Colômbia e, em março de 2008, os colombianos usaram alguns deles para atacar e destruir um esconderijo das FARC na até hoje pouco falada "Operação Fênix", que resultou na morte do líder guerrilheiro Raul Reyes sem destruir alvos civis nas proximidades. A precisão do sistema de pontaria israelense Elbit e a estabilidade do Super Tucano como plataforma de tiro foram na ocasião destacadas nos círculos militares.

Por ROBERTO PEREIRA DE ANDRADE