O falcão noturno

O Lockheed F-117 Nighthawk quase não parece avião, mas abriu caminho para a tecnologia stealth de baixíssima reflexão das ondas de radar

Por Ernesto Klotzel Publicado em 24/04/2015, às 00h00 - Atualizado em 28/02/2019, às 19h19

As aeronaves militares atuais devem sua eficácia para desafiar o mais ferrenho arsenal antiaéreo à tecnologia furtiva conhecida por stealth. Esta tem suas raízes nos Estados Unidos onde, em 1974, a DARPA (Defense Advance Research Projects Agency, ou Agência de Projetos Avançados de Pesquisa para Defesa, em tradução livre) solicitou a cinco indústrias aeronáuticas com respeitável histórico militar um estudo sobre o potencial de desenvolvimento de um avião de combate de difícil detecção pelo radar. A Lockheed Corporation, de Burbank, Califórnia, com um brilhante passado de realizações bem-sucedidas, desde os tempos da hélice com o Constellation até a era dos jatos, com o F-80, o U-2, o SR-71 e o F-104, não foi inicialmente convidada a participar com seu projeto. Seu último avião de combate, o F-104 Starfighter, fora lançado havia uma década. Não se podia menosprezar o talento que emanava de sua compacta, talentosa e criativa Divisão de Projetos Avançados de Desenvolvimento (ADP), conhecida vulgarmente como “Skunk Works” (ou Fábrica do Gambá), chefiada pelo seu fundador, o lendário Kelly Johnson.

No início de 1975, a ADP tomou conhecimento da histórica concorrência e tratou de “se convidar”, principalmente porque uma das prioridades recentes da ADP era justamente a redução da detecção pelo radar. Nesse setor a empresa já contabilizava algum sucesso em termos de novos materiais de absorção das micro-ondas emitidas pelos radares e o formato ideal de uma eventual aeronave stealth. O SR-71, jato Mach 3+, já incorporava o resultado obtido até então. Johnson obteve da CIA a permissão para que, quebrando o sigilo que cercava o avião espião supersônico, a Lockheed pudesse defender sua presença no projeto stealth, mostrando que podia oferecer o que a DARPA procurava na base do que havia feito – com certa limitação – no Lockheed SR-71 trisônico.

A pilotagem depende de correções feitas por computador

Os estudos do F-117 se basearam na teoria simplificada das correntes eletromagnéticas em bordas geométricas

O FÍSICO SOVIÉTICO

Até então, o novo projeto não tinha nada de secreto. Assim como também estava à disposição de qualquer um o trabalho do físico soviético Pyotr Ufimtsev que, por sua vez, aperfeiçoou os trabalhos prévios de um cientista escocês e outro alemão. Ufimtsev desenvolveu uma teoria simplificada que se concentrava nas correntes eletromagnéticas nas bordas de formatos geométricos. E, talvez sem saber, descobriu o caminho para o engenheiro de software Denys Overholster e o matemático aposentado Bill Schroeder da Lockheed fazerem história.

O trabalho publicado na revista do Instituto de Rádio Engenharia de Moscou revelou o ponto nevrálgico da tecnologia furtiva stealth: a intensidade do reflexo (eco) das ondas de radar quando incidem em um objeto não dependem das dimensões e, sim, da natureza de suas bordas. Ufimtsev foi ainda mais longe: na publicação afirmava poder incorporar um grau de invisibilidade virtual a um componente importante de grande porte – uma asa, por exemplo. Só havia um problema. Para que se tornasse também aerodinâmica, ela seria inerentemente instável para pilotagem manual. E, na época, não se podia contar com os computadores de bordo.

De posse dos trabalhos publicados, esquecidos e facilmente resgatáveis, Schroeder tratou de reduzir o formato complexo de uma aeronave convencional a uma série finita de superfícies bidimensionais que poderiam ser analisadas com relação à refletividade das micro-ondas. O resultado foi a “facetagem”, criando uma aeronave tridimensional, não composta por superfícies suaves e harmoniosas, mas por uma sucessão de painéis planos. Schroeder criou uma série de painéis triangulares que formavam a superfície da futura aeronave, cada qual passível de um cálculo isolado, que poderia ser montada no ângulo correto para refletir a radiação para longe da fonte emissora do radar em terra. A equipe de Overholser criou um modelo que, testado na unidade eletromagnética da Lockheed em Burbank, provou cabalmente que o stealth estava ao alcance de seus criadores. Em 1976, a Lockheed foi declarada vencedora da concorrência da DARPA.

Segredo absoluto

As linhas retas conferiam um ar ainda mais sombrio ao F-117

Os resultados da Lockheed foram considerados tão importantes estrategicamente que, da noite para o dia, instituiu-se um manto de segredo comparável ao do Projeto Manhattan, da bomba atômica. A administração do programa, até então predominantemente civil, passou para o mais alto comando militar. A “Skunk Works” construiu em Burbank dois F-117 pilotados, em escala reduzida, para realizar uma série de voos de ensaio antes do início de uma produção em série, conforme contrato firmado em 16 de novembro de 1978. O formato final do que seria o F-117 Nighthawk foi refinado em computador, dando origem a modelos sólidos testados em túnel de vento e submetidos às radiações eletromagnéticas.

Não existiriam protótipos. As primeiras cinco aeronaves seriam veículos de ensaios de voo. Eventuais correções de desempenho verificadas durante os programas de testes seriam incorporados nos F-117 operacionais na linha de montagem de Burbank. Em junho de 1981, menos de 31 meses após o inicio do programa, a primeira aeronave de teste saiu do hangar de montagem final e voou pela primeira vez.

Antes disso, em outubro de 1979, quando se iniciava a produção do F-117, o Comando Tático do Ar da Força Aérea dos EUA iniciou o processo de composição da unidade do caça stealth. O critério de seleção também surpreendeu. Seriam recrutados não apenas pilotos experientes, mas pilotos maduros, convidados das fileiras de majores e capitães da Força Aérea, todos aproximadamente da mesma idade, com missões de combate ar-terra e ar-ar em aeronaves como F-4, F-15, F-111, A-7 e A-10 no currículo. Cada candidato era entrevistado pessoalmente em tempo relâmpago: “Deseja uma oportunidade de voar em uma unidade nova ‘top secret’, que exigirá uma separação quase constante da família?”. O candidato tinha 5 minutos para se decidir. Dessa forma, em 15 de outubro de 1979, nascia o 4450º Grupo Tático. Por ser o primeiro piloto operacional do grupo, o major Al Whitley recebeu mais tarde uma placa com a gravação “Em reconhecimento a um evento significativo – 15 de outubro de 1982”. Passaram-se seis anos até que ele tivesse permissão para explicar para sua família o significado da inscrição.

A apresentação pública ocorreu apenas em 1990, após ter sido usado no Panamá dois anos antes

BASE NO DESERTO

A escolha do local de treinamento para o Grupo Tático recaiu sobre uma base rudimentar, na parte alta do deserto, próxima a Tonopah, Nevada, utilizada até então para testes nucleares e práticas de bombardeio. Ficava a 140 milhas a sudoeste de Las Vegas e da Base Aérea Nellis, a qual os futuros pilotos do Nighthawk seriam formalmente incorporados.

A segurança na base era quase religião, a cargo da polícia da Força Aérea. Cada F-117 tinha seu hangar próprio, totalmente equipado. Cada um dos então primitivos dormitórios recebeu pesadas cortinas para bloquear a luz, já que durante seis anos todos os voos seriam realizados à noite. Nos finais de semana, a Key Air e a America Trans Air levavam o pessoal da base de Tonopah para um breve encontro com suas famílias. O reconhecimento da existência do F-117 aconteceu em 10 de novembro de 1988. Em 5 de outubro de 1989, o Grupo Tático foi redesignado 37ª Ala Tática de Combate e, em 21 de abril de 1990, houve a apresentação oficial na Base Aérea Nellis.

Um dos obstáculos para o treinamento foi a falta temporária de F-117. Em seu lugar caças A-7 “Corsair” e, mais tarde, Northop T-38 “Talon” se encarregavam de manter os pilotos em forma. Além de se revelarem excelente disfarce para o que se passava realmente em Tonopah. Ou melhor, em Nellis. Os pilotos não podiam se valer de um simulador dinâmico ou mesmo um modelo biplace com instrutor, que nunca foi construído. A aparência de “patinho feio” do F-117, fruto do primeiro projeto stealth (alguns pilotos não envolvidos até duvidavam que pudesse voar razoavelmente) surpreendia quem o voava, “lembrando as qualidades de um F-15”.


TEMPESTADE NO DESERTO

Para evitar surpresas durante o programa de desenvolvimento, os projetistas da Lockheed utilizaram muitos itens “de prateleira” ou modificados “em casa”, todos de confiabilidade comprovada. Em termos aerodinâmicos, o F-117 é naturalmente instável. Computadores embarcados fazem o monitoramento constante da orientação da aeronave em voo e executam milhares de pequenas correções eletro-hidráulicas. Esse sistema de controle fly-by-wire foi aproveitado do F-16. O sistema de navegação inercial veio do B-52 e o sistema ambiental, do C-130. Outros componentes têm origem no F-16 e F/A-18. Os dois motores são General Electric F404 utilizados no F/A-18.

Nenhum detalhe que poderia gerar um eco indesejável das ondas do radar foi esquecido. Os fans dos motores ficam atrás de grelhas que bloqueiam e dispersam a energia do radar, as torres de visão noturna (FLIR e DLIR) são blindadas e a antena de rádio é retrátil. Todas as janelas têm bordas em forma de serra e a saída dos gases dos motores tem um formato especial para anular a detecção infravermelha. Na prática, a aeronave teria assinatura radar similar a de um pequeno pássaro. Como armamento, o F-117 pode transportar duas bombas guiadas de 1.000 kg, ou um total de 2.500 kg em armas diversas. O F-117 não dispõe de radar, como parte de seu stealth.

Uma rara imagem do F-117 sem o padrão com a pintura preta

Seu batismo de fogo ocorreu em 1989, na invasão americana ao Panamá. Durante a campanha, dois F-117A Nighthawks lançaram duas bombas no aeroporto de Rio Hato. Mais tarde, em 17 de janeiro de 1991, às 02h51 no horário saudita, a primeira bomba guiada a laser foi lançada sobre o Iraque, uma campanha que durou as 43 noites da chamada Tempestade no Deserto. No primeiro dia do conflito, 36 aeronaves F-117, menos de 2,5% do efetivo aéreo mobilizado pela coalizão da ONU, atacaram 31% dos alvos. Com o decorrer das hostilidades, os stealth realizaram 1.271 sortidas de combate, lançaram mais de 2.000 toneladas de munições guiadas e obtiveram um grau de acerto de 75%. Foram fabricados 59 unidades do F-117 de produção, além dos primeiros cinco destinados a testes. A aeronave com seus 993 km/h de velocidade, 1.720 km de alcance e 69.000 pés de teto, retirada oficialmente de serviço em abril de 2008 – devido à introdução do F-22 Raptor, que também possui características stealth e capacidade de ataque ao solo – não pode ser comparada aos aviões de combate da geração atual. Mas, em sua época, foi uma solução brilhante para um problema que hoje parece uma tecnologia plenamente assimilada. Com muito mais elegância e eficiência.

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