As diferenças e semelhanças entre o E-Jet E2 e o A220 em um comparativo exclusivo
Por Paulo Marcelo Soares* Publicado em 05/04/2022, às 17h08
Os Embraer E-Jet E2 e Airbus A220 são bem mais do que jatos regionais, e um pouco menos do que os narrowbodies que dominam o mercado (o Airbus A320 e o Boeing 737). Com as mudanças na demanda causadas pela pandemia, os “crossovers jets”, como vêm sendo chamados, têm conquistado uma fatia cada vez maior do mercado.
Essa nova categoria de aeronaves, os crossovers jets, apresenta custos operacionais por missão mais baixos do que os de narrowbodies tradicionais, e seus custos por assento finalmente se tornaram competitivos em relação a estes modelos, abrindo novas possibilidades para exploração de rotas que ainda não estão maduras o suficiente para suportar um A320 ou Boeing 737, ou permitindo a uma empresa manter o mesmo número de frequências diárias nos períodos de baixa demanda. O relativamente longo alcance de algumas versões permite, ainda, tentar algumas rotas internacionais inéditas.
Analisaremos as duas maiores versões, o A220-300 e o E195-E2 (referidos a partir de agora como A220 e E2, respectivamente). A comparação entre dois aviões não é um jogo de “Super Trunfo” e o confronto de números exclusivamente pode esconder outros aspectos mais importantes. Além disso, um modelo que é ideal para uma determinada empresa pode não ser adequado para outra, de acordo com seu perfil de missão. Neste artigo, faremos uma análise um pouco mais ampla, mostrando não só as diferenças entre os diversos sistemas, mas também entre as performances em algumas missões típicas dessa categoria de aeronave.
Ambos os aviões têm um design semelhante. Asa baixa, empenagem convencional e motores posicionados em pods sob as asas. O grande diferencial destas aeronaves é o motor Geared Turbofan Pratt & Whitney PW1500G, que é oferecido em diferentes versões, com seu empuxo variando entre 19 e 23 mil libras. Destaque para a construção das asas do A220, em materiais compostos. A Embraer optou por uma solução mais conservadora e manteve toda a estrutura básica do E2 em materiais tradicionais. O peso básico operacional típico do A220 é em torno de 37.100 quilos enquanto o E2 pesa cerca de 35.700 quilos em configuração típica. São aeronaves substancialmente mais leves, entre quatro e cinco toneladas, que os A319neo e Boeing 737 MAX-7 e isso se traduz em uma grande economia de combustível.
A principal diferença está na largura da fuselagem e na disposição de assentos. O A220 utiliza um arranjo de cinco assentos por fileira (dois do lado esquerdo e três do lado direito), ao passo que o E2 manteve a configuração de quatro assentos. Do ponto de vista do passageiro, uma configuração sem o detestado assento do meio é sempre mais atrativa. Além de inconveniente, o assento do meio torna um pouco mais lento os processos de embarque e desembarque.
A mais relevante referência de conforto para o passageiro é o espaço entre as poltronas (seat pitch) e seu valor é uma decisão do operador. Para um mesmo seat pitch, o A220 acomoda mais passageiros do que o E2, o que ajuda a baixar o custo por assento. Para uma configuração que leve um mesmo número de passageiros, o A220 pode ter um seat pitch ligeiramente maior, gerando uma maior sensação de conforto. A capacidade típica do A220 é de 145 passageiros no pitch padrão de 31 polegadas, podendo chegar a 160 passageiros em um arranjo de máxima densidade com apertadas 28 polegadas de seat pitch. No E2, a capacidade típica é de 132 passageiros com 31 polegadas de pitch, podendo chegar a 146 passageiros com 28 polegadas.
As janelas dos passageiros são maiores em ambos aviões, sendo a área das janelas do E2 cerca de 5% maior do que as do A220. Na cabine de passageiros, a fuselagem mais larga do A220 propicia uma largura dos assentos ligeiramente maior e há, de fato, uma sensação de mais espaço interno. Entretanto, uma fuselagem mais larga significa maior arrasto aerodinâmico e mais peso. O A220 possui uma fuselagem um pouco mais curta do que a do E2 e, consequentemente, o volume disponível por passageiro para acomodar bagagens nos overheads bins é um pouco menor no A220.
O formato de fuselagem “double bubble” do E2 garante um bom espaço interno, preservando uma razoável capacidade de carga nos porões (4.930 quilos em 29,9 metros cúbicos). Com uma fuselagem mais larga, o A220 se beneficia de volume e capacidade de porão de carga maiores (5.952 quilos em 31,6 metros cúbicos). Ambos possuem dois compartimentos de carga, um na seção de fuselagem à frente das asas e outro na seção atrás das asas. No A220, as portas de carga são operadas hidraulicamente, o que significa peso superior, maior custo de manutenção e demora na operação em relação às portas operadas manualmente no E2. Os porões são Classe C com detecção-extinção de fogo e fumaça e, no A220, a ventilação é item de série, possibilitando transporte de animais vivo. No E2, esse item é opcional.
O A220 possui controles de voo por meio de sidesticks, e o E2 conta o tradicional manche em formato de W invertido, apesar de a própria Embraer também adotar sidesticks em outros modelos por ela fabricados. A decisão de manter o manche tradicional foi para garantir a comunalidade de treinamento, de forma que uma tripulação de E1 pode voar o E2 com apenas um rápido curso de diferenças, sem necessidade de simulador. Essa é uma grande vantagem caso um operador tradicional de E1 opte por modernizar sua frota ou operar simultaneamente ambos os modelos.
O cockpit do A220 é mais espaçoso do que o do E2. As janelas laterais do cockpit do E2 se abrem, permitindo tanto uma rápida saída em caso de emergência como a ventilação direta quando o sistema de ar condicionado está desligado. No A220, é necessário usar uma escotilha no teto, o que dificulta um abandono do cockpit. Além disso, com o sistema de ar condicionado desligado-inoperante, a tripulação vai sofrer com o calor.
Ambas os aviões dispõem de aviônica moderna, com diversos recursos destinados a aliviar a carga de trabalho e aumentar a consciência situacional da tripulação. No A220, o painel possui quatro grandes telas de cristal líquido (LCD) com mais uma tela no pedestal. O E2 possui quatro telas de LCD além dos Multifunctional Control Display Units (MCDU) para o Flight Management System (FMS). As duas famílias de aeronaves possuem como itens opcionais Electronic Flight Bags (EFB) e Head-Up Displays (HUD). Em seus Primary Flight Displays, o E2 possui o Synthetic Vision System (SVS) que, embora não seja homologado como meio primário de desvio de obstáculos, aumenta a consciência situacional em regiões montanhosas e operações em baixa visibilidade.
O radar do E2 apresenta visualização vertical das áreas de mau tempo, enquanto o A220 opera com um radar do tipo Multiscan. No A220, a interface entre os pilotos e os diversos sistemas da aeronave (operação do sistema de gerenciamento de voo, o FMS, visualização de páginas sinóticas, sintonia de rádios, envio e recepção de mensagens do sistema de comunicações e relatório de aeronaves, o ACARS, ou da comunicação controlador-piloto através de enlace de dados, o CPDLC) é feita por meio de dois Multifunction Keyboard Panel (MKP) e dois cursores operados por um trackball, semelhante aos encontrados em alguns computadores pessoais. No E2, é utilizado o mesmo sistema do E1, com teclados nos MCDU e um touchpad para cada piloto. Tirando as novas telas de LCD de maior tamanho, o cockpit do E2 pouco mudou em relação ao do E1, mais uma vez, visando à comunalidade de tripulações e treinamento. O conceito “dark and quiet” se faz presente em ambos os modelos, ou seja, em uma operação normal, os pushbuttons permanecem apagados enquanto os switches ficam na posição 12 horas.
O A220 faz uso intensivo do Electronic Checklist, tanto em operação normal como em emergências. Não há memory items no A220, o que é uma grande vantagem. No E2, o uso de Electronic Checklist ainda depende de aprovação, embora muitos operadores optem por voar sem ele, justamente para manter a comunalidade de operação com o E1.
Para um piloto que opera qualquer aeronave moderna com sistema de instrumentos eletrônicos de voo (EFIS), ambos os cockpits parecerão bastante familiares e a transição não deverá apresentar nenhuma dificuldade. A visibilidade no cockpit é muito boa nas duas aeronaves.
Os sistemas de ar condicionado, pressurização, ventilação e pneumático são semelhantes nas duas aeronaves. O ar sangrado dos motores alimenta duas packs, que distribuem ar condicionado para pressurizar a cabine da aeronave e os porões de carga. Adicionalmente, o ar sangrado da unidade auxiliar de potência (APU, na sigla em inglês) supre as demandas em solo e em voo até uma determinada altitude (23 mil pés no A220 e 15 mil pés no E2). A pressurização opera normalmente em modo automático e é integrada ao FMS para obter os dados de elevação das pistas e fazer o planejamento do ciclo de pressurização. Todas as informações dos sistemas estão disponíveis nas páginas sinóticas.
Outra área em que as semelhanças são grandes é a parte elétrica. Geradores nos motores e na APU fornecem energia elétrica em corrente alternada (AC), que alimenta alguns sistemas e também é convertida para corrente contínua (DC). A maioria dos sistemas opera em DC. O A220 possui, adicionalmente, um Permanent Magnetic Alternator (PMA) em cada motor, que atua gerando energia exclusivamente para o sistema fly-by-wire (FBW) de controles de voo. Em caso de falha total dos geradores, os sistemas essenciais ao voo continuam a ser supridos por uma Ram Air Turbine (RAT).
Tanto o A220 como o E2 são certificados para pousos automáticos e operações por instrumentos (ILS CAT II/III), embora apenas o E2 possa fazê-los em condição monomotor. A interface do piloto automático e suas funções básicas são semelhantes. As aeronaves são capazes de seguir um plano de voo pré-programado nos modos laterais e verticais e executar aproximações com requisitos de navegação por desempenho (Required Navigation Performance Authorization Required, ou RNP-AR) com margem de 0,3 milha náutica. O A220 pode capturar e seguir uma radial de um VOR, função cada vez menos usada hoje em dia. Uma característica interessante do autopilot do A220 é o Emergency Descent Mode (EDM), que comanda uma descida automática caso haja uma despressurização. É um recurso a mais de segurança em uma situação que demanda uma alta carga de trabalho com pouco tempo para execução.
Sistemas automáticos detectam formação de gelo nas superfícies críticas e acionam o aquecimento dos bordos de ataque das asas e das naceles dos motores. Se assim desejar, a tripulação pode acioná-los manualmente. Uma vantagem do A220 é o aquecimento elétrico de todas as janelas do cockpit. No E2, apenas os para-brisas frontais são aquecidos. Isso causa embaçamento das janelas laterais, especialmente quando pousamos em uma localidade de clima quente e úmido após um voo longo em grande altitude.
Operam de maneira bem semelhante. São três sistemas hidráulicos totalmente independentes operando com pressão fornecida por bombas ligadas na gearbox dos motores ou elétricas. Um único sistema hidráulico é capaz de assegurar o controle direcional da aeronave em seus três eixos. Há pequenas diferenças na arquitetura do sistema hidráulico entre as duas aeronaves. A principal delas diz respeito às Power Transfer Unit (PTU). No A220, uma PTU é utilizada para pressurizar o sistema hidráulico um no caso de falha do motor um. No E2, também há uma PTU, mas que é usada apenas para assegurar o recolhimento rápido do trem de pouso em caso de falha do motor dois na decolagem.
Ambos os jatos possuem sistemas de trem de pouso eletricamente controlados e hidraulicamente atuados. No E2, portas cobrem completamente o trem de pouso. Há um sistema para abaixamento em emergência. Ele é comandado eletricamente no A220 e por meio de uma alavanca no E2. As duas famílias dispõem de sistemas de autobrake e os freios de carbono são equipados com anti-skid. Os freios do E2 são eletricamente comandados e hidraulicamente atuados. Já no A220, os freios são comandados e atuados eletricamente, garantindo frenagem normal mesmo em caso de falhas hidráulicas severas, algo que, até então, só era visto nos widebodies 787.
Outras vantagens do design dos freios no A220 são os sensores de pressão em todos os pneus, e um modo de frenagem alternativo em caso de falha do sistema normal de freios, com possibilidade de frenagem diferencial, mas sem anti-skid. Há, ainda, o uso do parking brake como último recurso de parada. No E2, em caso de falha dos sistemas hidráulicos 1 e 2, ou de ambos os controladores dos freios, a única alternativa para parar a aeronave será a aplicação do parking brake, sem possibilidade de frenagem diferencial nem anti-skid. Em algumas situações de falha, o controle direcional no solo será extremamente difícil.
No quesito controles de voo, os sistemas apresentam algumas diferenças significativas. Ambos são full fly by wire, ou seja, não há conexão mecânica entre os controles de voo e as superfícies de controle (ailerons, profundores, leme, spoilers, flaps e slats). Os movimentos dos pilotos nos pedais do leme e nos sidesticks no A220 ou no manche no E2 são enviados a computadores que processam essa informação e enviam comandos de atuação para os atuadores das superfícies. Ambos os aviões possuem proteções de seu envelope de voo, ou seja, mesmo deliberadamente, não é possível exceder certos limites de inclinação lateral, ângulo de ataque e velocidade.
No A220, os sidesticks possuem um “soft stop”, que é o limite do envelope normal de voo, mas que pode ser deliberadamente excedido caso a tripulação exerça uma força adicional no stick, levando-o até o “hard stop”, que é o batente mecânico, cujos limites não podem ser ultrapassados. No E2, o FBW age de uma maneira um pouco diferente. Há um “Normal Flight Envelope”, com proteções ativas, que podem ser deliberadamente excedidas pela tripulação. A partir desse limite, a atuação dos comandos de voo vai sendo progressivamente diminuída de modo a não exceder o “Limit Flight Envelope”.
Em caso de determinadas falhas de sistemas, há uma degradação para um “direct mode”, quando as proteções são reduzidas ou até perdidas, mas a tripulação permanece durante todo o tempo com controle total da aeronave. No E2, a tripulação pode acionar manualmente o direct mode, ao passo que, no A220, o acionamento desse modo só se dá automaticamente, em caso de falhas de sistemas e/ou sensores. Os sidesticks do A220 não são interligados, ao passo que os manches do E2 são.
Outra área em que há uma grande semelhança entre os modelos. Os motores são alimentados por um collector tank, que fica sempre cheio. Tanques nas asas alimentam os collector tanks. Um tanque central leva a maior parte do combustível e alimenta os tanques das asas. Cabe ressaltar que o A220 não só leva mais combustível total, como, também, armazena mais querosene nos tanques das asas, o que melhora um pouco sua capacidade de payload.
Ao comparar desempenhos, temos algumas diferenças significativas. De uma maneira geral, por ser uma aeronave mais leve, o E2 apresenta vantagem nos quesitos performance de decolagem/pouso e também no consumo de combustível para transportar um determinado payload. A maior capacidade total em seus tanques confere ao A220 um alcance maior. Os fabricantes anunciam um alcance de 2.655 milhas náuticas para o E2 e 3.350 milhas náuticas para o A220. Entretanto, esses valores assumem uma série de variáveis (vento calmo, condições ISA, pistas que permitam decolagem com peso máximo etc.), muito raramente obtidas no dia a dia. Em uma operação mais realista, com um payload típico, esses valores estariam mais próximos a 2.300 milhas náuticas para o E2 e três mil milhas náuticas para o A220.
Cabe ressaltar que, para obter uma performance de decolagem semelhante à do E2, o A220 necessita estar equipado com a variante de motor mais potente, com consequente aumento de consumo. Recentemente, a Airbus ofereceu uma versão com MTOW ainda maior (70,9 toneladas), mas este aumento de peso máximo nem sempre poderá ser útil em temos de payload ou alcance por limitação do comprimento de pista disponível. Isso é particularmente relevante em operações fora dos Estados Unidos, onde muitos aeroportos têm pistas inferiores a 2.700 metros, que seria aproximadamente o comprimento de pista necessário para uma decolagem do A220 no seu MTOW.
De modo geral, em percursos curtos, o E2 apresenta menor custo operacional direto. A maior capacidade de passageiros e payload do A220 pode dar uma pequena vantagem no custo por assento, caso seja adotada a máxima capacidade. Em percursos superiores a 1.900 milhas náuticas, ou em operações com alta densidade de passageiros e carga de porão, o maior alcance/MTOW do A220 pode possibilitar uma oportunidade de lucro maior, ou até mesmo ser a única opção, desde que operando a partir de pistas relativamente longas. Ambos os aviões têm capacidade de operar no Santos Dumont (SDU), embora, até o momento, apenas o E2 tenha sido homologado para tal. Em pistas curtas-quentes-elevadas, o E2 apresenta um disponível de payload ligeiramente superior.
Os custos de aquisição-leasing são em geral mais baixos para o E2. Obviamente, cada contrato tem suas particularidades e grandes operadores podem conseguir descontos substanciais. Importante lembrar que a pandemia virou o mercado de aeronaves ao avesso, mas, de uma maneira geral, os valores médios de aquisição-leasing destes aviões sofreram menos depreciação do que aeronaves maiores e mais antigas. Em uma média entre os principais lessors, o E2 possui um custo de leasing mensal cerca de 6% inferior ao do A220 e um custo de aquisição cerca de 8% menor. Os custos de manutenção são relativamente semelhantes. No final do mês, pode-se considerar uma economia em custos diretos de operação na ordem de 5% a 7 % para o E2, com custos por assento bem semelhantes entre as aeronaves.
Em resumo. Temos duas aeronaves extremamente eficientes, com ganhos de performance e custo operacional significativamente reduzidos em relação a seus predecessores. São aeronaves dotadas de avançada tecnologia, o que facilita o trabalho da tripulação, confortáveis para o passageiro e que têm tudo para ocupar uma importante fatia de mercado nos próximos anos.
* O Paulo Marcelo Soares atualmente é comandante de Airbus A320, tendo sido comandante de Embraer E-Jet, Airbus A330 e Fokker 100.