A necessidade de disputar mercado não só com os canadenses, mas também com russos, chineses e japoneses, levou o fabricante brasileiro a desenvolver uma família de aviões de 100 assentos
Roberto Pereira De Andrade | Fotos Divulgação Publicado em 22/03/2012, às 13h54 - Atualizado em 27/07/2013, às 18h45
No dia 27 de fevereiro a Embraer divulgou, na França, detalhes do contrato que está alinhavando com a empresa Estonian Air para reequipar sua frota com jatos de fabricação brasileira. A notícia seria apenas mais uma na longa lista de vendas dos E-Jets se não incluísse uma declaração de Tero Taskila, presidente da companhia báltica, admitindo ter sido consultado sobre as características desejáveis para os eventuais substitutos das aeronaves que está negociando: "Estamos muito satisfeitos pela Embraer considerar nossas necessidades ao projetar os novos E-Jets".
Não foi essa a primeira vez que o assunto foi tratado abertamente. Já no fim de 2011, no almoço anual para os jornalistas, o CEO da Embraer, Frederico Curado, admitiu a existência desse programa e apontou o engenheiro Luis Carlos Affonso como responsável por ele na condição de vice-presidente de Novos Programas.
Era uma questão lógica. Com o acirramento da disputa no mercado de aviões regionais na faixa dos 100 assentos e o surgimento de novos modelos concorrentes, era de se esperar uma reação do fabricante nacional cujos aviões dessa classe podem perder a primazia global de vendas.
Hoje, o mercado dessa faixa está limitado praticamente aos modelos da Embraer e da Bombardier, do Canadá. Daqui a quatro anos estarão na disputa aviões fabricados na China, no Japão e na Rússia - que ainda precisam se mostrar viáveis. E todos oferecendo desempenho superior aos atuais E-Jets. Dominará as vendas quem for melhor em detalhes como financiamento, custo operacional, suporte de pós-venda e capacidade de marketing. Os tempos de hegemonia indiscutida pelos modelos nacionais estão no fim.
CANADENSES NA DISPUTA
O velho ditado de que para companhias de aviação comercial "vende melhor o avião mais bonito" já não funciona mais. Mesmo porque, projetados com a ajuda de computadores, todos os novos jatos da faixa de 100 assentos são parecidos e os passageiros não saberiam dizer qual é qual. O que importa, agora, com o alto preço do barril de petróleo, é o desempenho da aeronave, e se ela é eficiente em termos de consumo de combustível e menos poluidora.
Quando lançou sua família de E-Jets, a Embraer se esforçou para entrar no mercado com uma aeronave dessa faixa que unisse essas qualidades ao conforto de aviões de maior porte. Isso, somado a uma bem-implantada rede de apoio de pós-venda, ajudou a transformar os modelos E-170, E-175, E-190 e E-195 nos mais bem-vendidos para 70/122 assentos (1.050 pedidos firmes até o fim de fevereiro último). Diante desse desafio mercadológico, a rival canadense Bombardier lançou sua C Series, prevendo aeronaves para 90/149 passageiros e turbinas de nova geração. Mas quando todos esperavam uma reação rápida da Embraer, ela optou pela espera e nos três anos seguintes essa atitude precavida provou ser a mais acertada. Em primeiro lugar observou a reação das poderosas rivais Airbus e Boeing, em cuja faixa de atuação a canadense passou a concorrer por baixo. Além disso, os motores para a nova geração de jatos não estavam ainda desenvolvidos e provados.
E, finalmente, de onde viriam os recursos? Desenvolver uma nova família de jatos comerciais de 100 assentos exige investimentos superiores a US$ 3 bilhões, recurso que a Embraer sabia que sua rival não tinha. Nem a Embraer, que por isso continuou esperando e observando. Como medida paliativa, a Bombardier lançou os modelos CRJ900 NG e CRJ1000 NG, para 90 e 100 passageiros, mas ainda de fuselagem estreita. Essa solução de compromisso não funcionou, e o CRJ1000 acumulou apenas 49 encomendas desde que foi lançado, em 2008.
Finalmente, em 2011, o programa dos C Series deslanchou graças a uma série de parcerias internacionais. Ele prevê as versões CS 100 e CS 300, para respectivamente 100 a 125 assentos e 130 a 149 passageiros. Mas até agora comoveu poucos clientes internacionais e sabe-se que para pagar o preço de seu desenvolvimento uma aeronave desse porte precisa vender pelo menos 300 exemplares! As entregas dos C Series de linha começam em 2014, mas então outros concorrentes estarão na liça: o chinês, o russo e o japonês.
#Q#OS NOVOS CONCORRENTES
Rússia e China têm hoje mercados abertos, e disputam a economia global com nações do Ocidente. Mas essa "abertura" é apenas em termos, já que produtos estrangeiros concorrentes sofrem sobretaxas e dificuldades para entrar no país. Precisando renovar a frota aérea nacional dos tempos da União Soviética, a Rússia usou seu poderoso parque industrial para desenvolver com a ajuda do governo o Superjet 100, projetado pelo birô Sukhoi. Com uma invejável habilidade comercial, os russos formaram uma joint venture para aperfeiçoar o novo avião junto da italiana Alenia, que desenvolveu os motores SaM 146 com a francesa Safran, a russo NPO Saturn e a norte-americana Boeing, que está dando consultoria de marketing. O resultado é um elegante bimotor de 100 assentos que começa a sair agora da linha de montagem com boas perspectivas de vendas na Rússia, nos países da antiga URSS e na Europa. Por enquanto, a cadência de montagem é ainda pequena, mas seis anos após terem começado as vendas já foram negociados 263 exemplares e 74 opções. A Rússia não tem uma boa tradição de apoio de pós-venda, mas isso pode mudar com os associados ocidentais dando força.
O caso da China é parecido. O país carece de uma boa rede de aerovias e o governo investe pesado em infraestrutura aeroportuária. Mas faltam aviões e pelo menos 300 deles seriam para a faixa dos 100 passageiros. Somem-se a eles outros clientes de Ásia, África e América Latina e os chineses poderiam negociar mais de 400 jatos da nova série Comac C919, com versões para 160 a 190 passageiros. O programa de ensaios está chegando ao fim e exemplares de pré-série já estão em serviço em caráter experimental.
BOMBARDIER C SERIES, SUKHOI SUPERJET 100, MITSUBISHI ARJ E COMAC C919 DISPUTAM MERCADO REGIONAL
Mais uma alternativa chinesa é o Comac ARJ21, uma versão chinesa modificada do norte-americano Boeing DC-9. Embora seja conceitualmente uma aeronave de projeto já antigo, trata-se de um desenho seguro e provado, para o qual os chineses já acumulam 237 encomendas. O aparelho destina-se à faixa de mercado de 70 a 95 passageiros, mas já estão trabalhando numa versão alongada para 120 pessoas.
A VOLTA NIPÔNICA
Décadas atrás, o Japão espantou o mundo ao lançar a produção seriada do YS-11, conhecido no Brasil como "Sanurai", um turbo-hélice regional para 70 passageiros. A comercialização da aeronave não deu certo por vários motivos, mas em nada denegriu suas qualidades técnicas. Agora, apoiado nessa experiência anterior, o Japão volta à briga com um jato para 78 a 92 assentos, designado MRJ (Mitsubishi Regional Jet). Projetado e construído por um consórcio de empresas de vários países, o MRJ mira o amplo mercado global de países nos quais a indústria nipônica tem influência maior. Ele usará dois motores Pratt & Whitney 1217G na versão MRJ90 e PW1215G no modelo MRJ90, e começa os ensaios em voo no ano que vem, prevendo-se que o protótipo voe este ano. As entregas devem ficar para 2014.
Com o programa do C Series canadense em rota de colisão com os interesses da Boeing e da Airbus, o programa do MRJ, ainda na infância, e os modelos chineses e russos ocupados em garantir mercados que já são cativos, resta à Embraer desenvolver agora seus E Jets de nova geração.
Até agora nem o presidente Frederico Curado, nem o engenheiro Luis Carlos Affonso detalharam muito o esforço.
Affonso, o mesmo homem que deu o grande impulso na nova geração de jatos executivos da Embraer, sempre foi discreto nas declarações, mas sabe-se que os novos aparelhos devem basicamente usar os mesmos lemes e fuselagem dos E-Jets atuais, com novas asas (talvez até de novo perfil) dotadas de sharklets importantes e turbinas de nova geração, basicamente as mesmas selecionadas para a C Series. Sua capacidade deve ficar na mesma faixa das atuais, mas com peso estrutural menor, uso proporcionalmente maior de novos materiais e autonomia superior. Obviamente, a cabine oferecerá mais conforto e os sistemas de bordo serão de última geração. Quanto ao nome comercial, continua o segredo. A Boeing batizou sua nova geração de jatos 737 de MAX e a Airbus chama seus novos A 320 de neo. Mas o nome não importa. O que vai pesar será se os novos aparelhos, com entregas previstas para 2015/2016, vão realmente bater a C Series e os rivais asiáticos em desempenho, preço e custo operacional. Se a Embraer conseguir isso, terá conquistado muitos dos seus clientes que hoje voam os E-Jets normais. E só isso já é um "mercado cativo" de fazer inveja aos homens de vendas do Japão, da Rússia e da China!