Autoridades aeronáuticas e indústria discutem a liberação de equipamentos eletrônicos em todas as fases do voo
Robert Zwerdling Publicado em 11/06/2013, às 06h28 - Atualizado em 27/08/2013, às 22h54
Há anos a indústria aeronáutica tem se deparado com um assunto extremamente polêmico: existe real possibilidade de alguns equipamentos eletrônicos interferirem nos sistemas de navegação de uma aeronave? A resposta, em princípio, é sim. Pelo menos é o que indicam as estatísticas fundamentadas em relatos postados por pilotos de linha aérea, comissários e mecânicos. Porém, a grande dificuldade na análise das ocorrências é que não existe correlação entre um caso e outro, e muito menos uma regularidade deles. Essa situação faz com que autoridades "quebrem" a cabeça para tentar achar respostas e estabelecer recomendações com base em algo concreto, o que ainda não existe. Do outro lado, os passageiros estão fazendo pressão para que as companhias aéreas liberem totalmente o uso de alguns equipamentos eletrônicos em todas as fases do voo, que hoje só podem ser utilizados acima de 3.000 m (10.000 pés), seguindo recomendação das autoridades. A Europa foi a primeira a se posicionar favoravelmente ao uso de eletrônicos a bordo, especialmente os telefones móveis. "Foi lá que surgiu o projeto OnAir, cuja missão era desenvolver os primeiros serviços de comunicação a bordo voltados para o passageiro. Graças a uma joint venture entre a francesa Airbus e a holandesa Sita, algumas companhias aéreas passaram a oferecer conexão ar-terra para os clientes que desejassem utilizar o telefone celular em voo, acima de 3.000 m", lembra o piloto de linha aérea Rodolfo Kim.
Como aviador, nunca percebi qualquer tipo de alteração em sistemas de navegação. Porém, aparelhos celulares, sem estar no modo avião, causam interferência no módulo de comunicação, com ruído característico perceptível nas caixas de áudio. Mas, como demonstram relatos enviados às autoridades aeronáuticas em todo o mundo, podem acontecer problemas mais graves. Lembro o que relatou um colega, que, na época, comandava Boeing 737-300 na extinta Varig. Ele perdeu a marcação de combustível nos tanques quando a aeronave ainda estava estacionada com os motores desligados. Desconfiado, chamou a comissária para que verificasse se algum passageiro falava ao celular - na época era proibido utilizar o aparelho mesmo com as portas da aeronave abertas. A aeromoça encontrou o passageiro e solicitou-lhe que desligasse o telefone. Na mesma hora, os indicadores de combustível voltaram a funcionar normalmente.
Quando especialistas em aviônica foram questionados, não houve uma resposta para o caso, até porque muitos passageiros esqueciam (e ainda esquecem) de desligar os aparelhos, sem que qualquer diferença nos sistemas da aeronave fosse notada. Alguns 63técnicos também chegaram a sugerir que existia a possibilidade, muito remota, de que alguma fiação mais antiga, com capa protetora desgastada e próxima à cabine de passageiros, poderia estar mais suscetível às interferências. Porém, não há qualquer prova concreta e, se fosse o caso, uma aeronave Boeing 787, de novíssima geração, não sofreria qualquer tipo de anomalia. Porém, a própria Boeing sugere que o avião não está livre de algumas ondas mais potentes, como declarado em entrevista a Bloomberg Television. A emissora de TV divulgou o caso recente de uma aeronave regional que voou algumas milhas com pane no sistema de navegação, causada por aparelho iPhone acionado sem estar em modo avião, o que eliminaria a emissão das ondas de rádio do telefone. A reportagem entrevistou especialistas, companhias aéreas e fabricantes de aeronaves e ouviu da Boeing que existe, sim, possibilidade, mesmo que mínima, de algum sistema sofrer pane com a interferência causada por equipamentos eletrônicos portáteis. Adaptamos a seguir alguns tópicos abordados na reportagem da Bloomberg.
Apesar de algumas companhias aéreas, entre elas a Delta Airlines, estarem fazendo pressão a favor do relaxamento das normas quanto ao uso de aparelhos eletrônicos a bordo, a U.S. Federal Aviation Administration (FAA), agência de aviação civil norte-americana, disse que recebeu 27 reportes de pilotos e mecânicos entre 2010 e 2012, com menções a problemas de funcionamento de sistemas da aeronave que poderiam ter como origem alguns equipamentos eletrônicos utilizados por passageiros. "Assim que o celular foi desligado, recuperamos o sistema de navegação", relatou um copiloto ao departamento de segurança de voo da NASA em incidente registrado em 2011. Felizmente, a aeronave pousou em segurança.
A campanha em favor do relaxamento das normas para utilização dos eletrônicos também ganha o apoio de figuras importantes, como a senadora norte-americana Claire McCaskill e o ator Alec Baldwin. Porém, o registro de diversos casos de anomalias em que aparelhos portáteis são suspeitos de interferência, forçam as autoridades a agir com cautela. A FAA decidiu em janeiro formar um comitê, reunindo representantes da indústria aeronáutica, para avaliar de que maneira poderá diminuir algumas restrições a bordo. A Delta Airlines, uma das principais interessadas, disse que a flexibilização será bem-vinda e atenderá aos anseios de seus clientes. Por outro lado, a holding formada pela United e Continental Airlines prefere que as mudanças não aconteçam porque irão dificultar ainda mais o trabalho de monitoramento dos comissários de bordo.
Do lado dos fabricantes de smartphones e principalmente dos tablets, a pressão natural é pela ampliação do uso dos eletrônicos a bordo. Levam em conta as pesquisas que apontaram o gosto dos clientes. Em dezembro, entrevistas realizadas com usuários do transporte aéreo apontam que quatro em cada 10 passageiros gostariam de poder utilizar seus equipamentos em todas as fases do voo. No mesmo questionário, 30% dos entrevistados assinalaram que já esqueceram acidentalmente algum aparelho eletrônico ligado durante todo o voo. Para a senadora McCaskill, as regras existentes são ultrapassadas e não há registro em pesquisas recentes de interferências causadas por tablets.
Apesar de nenhum acidente na aviação comercial estar ligado à interferência de equipamentos eletrônicos portáteis, 75 casos suspeitos de interferência durante o voo foram catalogados pela Iata (Associação Internacional do Transporte Aéreo) entre 2003 e 2009. As restrições na aviação norte-americana começaram a ser baixadas em 1966, depois que uma pesquisa apontou a interferência de rádios portáteis como causa de distúrbios em equipamentos de navegação. Depois, com o surgimento de telefones celulares e computadores portáteis, o monitoramento das autoridades precisou ser incrementado. Em testes realizados em 2004 alguns modelos de telefones portáteis foram analisados e o modelo Samsung Electronics Co. (005930), por exemplo, acabou sendo reprovado e, posteriormente, descontinuado. De acordo com a NASA, esse aparelho causava interferência e bloqueava os receptores dos sinais do sistema de posicionamento global (GPS) da aeronave. "A constelação de satélites já está sendo incorporada pela indústria aeronáutica como modo primário de navegação, melhorando a eficiência e diminuindo a separação entre os aviões. Uma falha causada no sistema de GPS por aparelho eletrônico portátil é intolerável", disse um porta-voz da FAA.
Alguns especialistas ressaltam que muitos aparelhos portáteis trazidos a bordo estão avariados por mau uso e podem causar interferências. "Se o aparelho transmitir em frequências para as quais não foi projetado, e as ondas atingirem uma antena utilizada para navegação e comunicação, a aeronave poderá apresentar problemas", explica David Carson, técnico especialista em eletrônica na Boeing. O difícil, segundo ele, é saber quais equipamentos estão em boas condições de uso ou mesmo se o passageiro passou seu aparelho para o modo avião.
Em passado recente, a FAA passou a ser pressionada em favor da liberação do uso de tablets em todas as fases do voo, com alegações de que companhias aéreas, como a Delta Airlines e o Alaska Air Group, liberaram aparelhos do tipo iPad para que os pilotos substituíssem os manuais de papel pelos eletrônicos em todas as fases do voo. A agência de aviação civil norte-americana rebateu, argumentando que as companhias foram autorizadas porque estavam seguindo todas as recomendações de segurança estabelecidas para essa prática e que os aparelhos entregues aos pilotos não utilizavam sistemas para captura de sinais Wi-Fi.
As discussões sobre esse assunto ainda devem se estender por muito tempo e a indústria aeronáutica e as autoridades poderão enfrentar polêmicas e pressões vindas de passageiros, de congressistas e dos próprios fabricantes de eletrônicos portáteis. "Resta saber se nós vamos ceder, alterando os regulamentos em favor de interesses comerciais, ou vamos optar pelo caminho correto, mantendo os níveis de segurança de voo, com testes dentro dos padrões mais adequados para homologação", argumenta John Cox, piloto aposentado e atual chefe executivo da empresa de consultoria Safety Operating Systems.
Robert Zwerdling é comandante de Airbus A320