Mirage comemora 50 anos

Um dos mais bem-sucedidos caças supersônicos, o avião de combate da Dassault completa meio século de operação em meio à indefinição do processo de reequipamento da FAB

Edmundo Ubiratan | | Fotos Divulgação Publicado em 09/12/2011, às 07h48 - Atualizado em 27/07/2013, às 18h45

Protótipo do Mirage III atingiu a velocidade de Mach 1.8

O início das operações do primeiro esquadrão formado pelos caças supersônicos Dassault Mirage III completa 50 anos em 2012. Uma efeméride digna de nota. E não só pelo sucesso desse avião de combate francês, dono de uma das mais bem-sucedidas trajetórias internacionais na aviação militar, com atuação em pelo menos 20 países desde sua primeira entrega, no início da década de 1960. Mas também pelo imbróglio político no qual está indiretamente envolvido. No Brasil, ele tornou-se pivô do conturbado Projeto FX de reequipamento e modernização da Força Aérea Brasileira, sucedido pelo Projeto FX-2, este último que se arrasta desde 2006 (leia mais no box da p. 79). A Aeronáutica ensaia há mais de uma década a substituição dos Mirage, só que ele continua voando, agora em sua última versão, o Mirage 2000.

Mirage III foi o primeiro avião europeu a romper a barreira Mach 2

O desenvolvimento do Mirage teve início na década de 1950, quando as autoridades francesas perceberam a necessidade de compor uma indústria bélica capaz de fazer frente aos soviéticos e, ao mesmo tempo, manter total independência dos Estados Unidos e da Inglaterra. Entre 1952 e 1953, a França solicitou estudos para o desenvolvimento de um caça com velocidades supersônicas. A especificação inicial previa que o novo avião pudesse voar a Mach 1.3 e atingisse 18.000 metros de altitude (59.040 pés) em seis minutos. Na ocasião, a Dassault apresentou o projeto Mystère-Delta 550, um caça com características similares às de seus pares americanos e soviéticos, embora tivesse uma configuração de asa em delta. Apesar do ótimo desempenho em altas velocidades e de sua construção simples e robusta, a asa em delta apresentava limitações, como perdas em manobrabilidade e menor performance em voos a baixa altitude. Além disso, a alta velocidade durante o pouso e a decolagem exigia pistas relativamente longas para sua operação.

Mystère-Delta 550 oferecia boas características aerodinâmicas, mas sofria com uma série de limitações operacionais

A barreira Mach 2
O protótipo MD 550-01 era impulsionado por dois motores Armstrong Siddeley MD30R Viper, com pós-combustão, de empuxo unitário de 9.61 kN. Durante os primeiros voos, em 1955, o protótipo ainda não possuía pós-combustão nem foguetes, o que limitou a velocidade a Mach 0.95. Mas após uma série de melhorias aerodinâmicas, o modelo atingiu a velocidade de Mach 1.3 ainda sem pós-combustão. Os resultados eram bastante animadores e, com novas alterações, a aeronave incorporou os pós-combustores. A Dassault renomeou o protótipo para Mirage I e o segundo exemplar, o MD 550-02, foi rebatizado para Mirage II.

Apesar dos bons resultados, as autoridades reprovaram o programa, principalmente por conta das limitações físicas dos protótipos, em especial as da célula, considerada pequena. Diante da negativa, a Dassault optou por alterar o projeto e construiu um novo protótipo quase 30% mais pesado, com diversas alterações aerodinâmica e motores turbojet de pós-combustão Snecma Atar 101G1 com empuxo de 43.2 kN. O novo reator oferecia maior potência em relação aos modelos Viper e viabilizava a construção de uma aeronave monomotora. Como a maior parte dos projetos aeronáuticos da época, o novo motor teve como base uma série de estudos alemães.

Nascia o Mirage III. Com os bons resultados dos modelos anteriores, a Dassault conseguiu reduzir drasticamente o tempo de projeto. O primeiro voo aconteceu em 17 de novembro de 1956 e, em setembro do ano seguinte, o protótipo atingiu a velocidade de Mach 1.8.

Os avanços eram inegáveis. Com ganhos de velocidade, alcance e teto operacional e melhor capacidade para transporte de sistemas de armas, a Dassault recebeu uma encomenda para 10 Mirage IIIA. A versão “A” já não era experimental e se diferenciava dos protótipos em função do refinamento do projeto. Os aviões eram um pouco maiores. A fuselagem 1,40 metro mais longa e a envergadura 64 centímetros maior elevaram a área das asas em 17,3%. O modelo ainda recebeu um novo motor, o Atar 09B, com 58.9 kN de empuxo unitário, e o radar Thomson-CSF Cyrano Ibis. O primeiro voo do Mirage IIIA ocorreu em 12 de maio de 1958, com velocidade de Mach 2.2. Com tal feito, o modelo se tornou o primeiro caça europeu a ultrapassar a barreira de Mach 2.

523 aeronaves vendidas
Um dos aviões, o Mirage IIIO, recebeu motor Rolls-Royce Avon 67, que oferecia 71,1 kN de empuxo, destinado a testes de validação com a força aérea da Austrália. Embora alcançasse bom desempenho, o motor Avon não vingou. Nenhum modelo posterior o adotou. O primeiro modelo de produção, o Mirage IIIC, voou pela primeira vez em outubro de 1960. Era ligeiramente diferente da série A, com fuselagem mais longa e dois canhões DEFA de 30 milímetros. Os primeiros exemplares dispunham de apenas três pilones, sendo um sob a fuselagem e dois montados sob as asas. Posteriormente, recebeu outros dois, e totalizou cinco pontos duros. A Dassault manteve a provisão para instalar os rocket motor SEPR, mas os utilizou em apenas alguns casos. O espaço deu lugar a um novo tanque de combustível. A Dassault ainda desenvolveu uma versão de treinamento, designada Mirage IIIB, com dois lugares. As principais diferenças eram a fuselagem ligeiramente maior que a do Mirage IIIC, sem os canhões e o radar, o que tornou o nariz mais pontiagudo e comprido. Além disso, o modelo não dispunha da opção para instalação do rocket motor.

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Em 1970, a FAB assinou o contrato para a compra de 12 Mirage IIIE e quatro Mirage IIID

Em paralelo ao recebimento dos primeiro Mirage IIIC, a Armée de l’Air (AdA) encomendou uma nova versão capaz de efetuar também ataque ao solo, além de corrigir os problemas encontrados nas versões IIIC. O modelo se tornou um dos primeiros aviões “multirole” do mundo, empregado em diversos tipos de missão. O Mirage IIIE recebeu um alongamento de 30 centímetros na seção dianteira da fuselagem, com o objetivo de aumentar o tamanho do compartimento de aviônicos e a capacidade de combustível. Uma série de melhorias nos sistemas de armas foi empregada, como novo sistema de navegação e adoção do radar Thomson-CSF Cyrano II. O motor passou a ser o Snecma Atar 9C. O primeiro voo ocorreu em 1º de abril de 1961. Os primeiros Mirage IIIC, de um total de 95, entraram em serviço ativo em julho de 1961 na AdA, e permaneceram em atividade até meados de 1988.

A AdA chegou a operar 63 unidades do Mirage IIIB, incluindo o protótipo, cinco Mirage IIIB-1 nas campanhas de ensaios, dez Mirage IIIB-2 (RV), que possuíam sondas de reabastecimento, para treinar pilotos dos Mirage IVA. Posteriormente, outros vinte Mirage IIIBE foram encomendados. O modelo dispunha de características similares às dos Mirage IIIE e também tinham radar. Na década de 1970, um dos modelos recebeu um sistema de controle fly-by-wire, o Mirage IIIB-SV (Variable Stabilité), e fez parte da bancada de testes para o programa em vigência, o Mirage 2000. A AdA passou a receber os Mirage III em janeiro de 1964, com um total de 192 encomendas. O modelo se tornou a série mais bem-sucedida no mercado, com 523 aeronaves vendidas.

Mirage da FAB voou até os anos 2000

O Mirage III no Brasil
Na segunda metade da década de 1960, o Brasil tinha como principais vetores de caça o inglês Gloster Meteor e o norte americano F-80 Shooting Star, projetos desenvolvidos duas décadas antes. Estavam já completamente obsoletos em relação à nova realidade global, que possuía aviões capazes de voar a Mach 2. O então Ministério da Aeronáutica elaborou um estudo para a modernização de seus meios. Os levantamentos mostraram que os aviões capazes de prover uma “eficaz proteção à nação” eram os americanos McDonnell Douglas F-4 Phantom II e Northrop F-5A Freedom, o britânico BAC Lightning e o francês Mirage III. Havia também os soviéticos MiG-21 e Sukhoi Su-15, porém não entraram no estudo em razão da posição política adotada pelo Brasil, do lado americano, durante a Guerra Fria. Embora o estudo mostrasse a enorme vantagem do Phantom II, ele foi descartado. Washington vetou a venda do modelo para qualquer nação latino-americana. À época, países da América Latina não dispunham de menor credibilidade política e econômica.

O caça supersônico F-5A apresentava limites frente ao Lightning e ao Mirage III. Em 1969, a balança comercial brasileira favorecia uma aproximação maior com a Inglaterra, o que levou o então presidente Costa e Silva a optar pelo modelo britânico. A escolha, embora tenha sido claramente política, não foi levada adiante, com o afastamento de Costa e Silva do cargo em decorrência de um acidente vascular cerebral (AVC). Em 30 de outubro do mesmo ano, assumiu a presidência o General Emílio Garrastazu Médici, que cancelou a proposta de compra para o Lightning e deixou a decisão por conta da FAB, que deveria optar pelo modelo que atendesse melhor a suas necessidades. Contra o Lightning pesava o fato de ser um avião extremamente caro de operar, enquanto o Mirage III recebia os louros por seus feitos durante a Guerra dos Seis Dias. Dos 58 aviões abatidos pela IAF (Israeli Air Force), 48 foram derrubados pelos Mirage.

Família de caças produzidos pela Dassault

A era supersônica
No dia 12 de maio de 1970, a FAB assinou o contrato para a compra de 12 Mirage IIIE e quatro Mirage IIID, com opção de outros 36 aviões, o que elevaria a frota brasileira para 48 aeronaves. Entretanto, o Brasil jamais chegou a formalizar esse contrato adicional. A aquisição dos Mirage III representava muito mais do que uma simples modernização dos meios, exigia uma completa reestruturação operacional. Os novos aviões eram muito diferentes dos antiquados Meteor ou Shooting Star, o que apresentava grandes desafios para pilotos e equipes de manutenção. O contrato com a Dassault previa também o treinamento de um grupo de pilotos e técnicos, que foram enviados à França em 23 de maio de 1972. Os oito pilotos eram veteranos na aviação de caça e possuíam mais de mil horas de voo em aeronaves de caça. O grupo era comandado pelo coronel-aviador Antônio Henrique Alves dos Santos, que viria se tornar o primeiro comandante da nova unidade a operar os Mirage. O treinamento foi realizado na Base Aérea de Dijon, o que levou o grupo a ser conhecido entre os demais pilotos como Dijon’s Boys.

O plano de modernização da defesa aérea ainda previa que os novos aviões seriam lotados numa nova base. Após alguns estudos, definiu-se que ela ficaria na cidade de Anápolis, em Goiás. A nova Base Aérea surgia dentro de uma nova filosofia, a qual deveria ser integrada à estrutura de base aérea com a unidade operacional, que funcionaria, até certo ponto, de forma autônoma. Além disso, o Brasil na época implementava um moderno sistema de defesa aérea, o SISDACTA (Sistema de Defesa Aérea e Controle de Tráfego Aéreo), o que levou a nova unidade a operar os Mirage a ser designada como 1º Alada (Ala de Defesa Aérea), ativada em 23 de outubro de 1972.

O primeiro Mirage IIEBR chegou a Anápolis a bordo de um Lockheed C-130E Hercules em 1º de outubro de 1972, seguido do segundo, no dia 8. Os dois exemplares foram montados em poucos dias por técnicos brasileiros e franceses, que ficaram responsáveis pelo processo até meados de maio de 1973, quando chegou o último exemplar. Os aviões foram designados F-103 na FAB, que finalmente viu seu primeiro Mirage III voar em 27 de março de 1973, quando o piloto de provas da Dassault, Pierre Varraut, realizou o voo de testes com o FAB 4910. O Brasil finalmente entrou na era supersônica em 6 de abril do mesmo ano, quando seis Mirage III, sendo dois biplace e quatro monoplace, realizaram um voo de formatura. Em abril de 1979, o Ministério da Aeronáutica alterou a estrutura do 1º Alada, mantendo o padrão adotado nas demais unidades do país. Desmembrou a estrutura de base e de unidade aérea, o que deu origem à Base Aérea de Anápolis (BAAN) e o 1º GDA (Grupo de Defesa Aérea). Embora fosse um dos mais modernos vetores de seu tempo, com o passar dos anos, o Mirage IIIBR se tornou limitado frente aos novos caças.

No início da década de 1990, a FAB optou por modernizar o Mirage. Realizou, porém, apenas alguns refinamentos aerodinâmicos simples. Visualmente, a principal mudança foi a instalação de canards fixos pouco atrás das entradas de ar. Paralelamente, a Aeronáutica, ciente das limitações do Mirage III, deu início a um processo para adquirir novos caças de quarta geração, conhecido como Projeto FX. Mas a burocracia em torno do reequipamento, que começou oficialmente somente em meados dos anos 90, arrastou-se por longo tempo e o impasse continua até hoje. Para não aumentar a defasagem tecnológica de sua aviação de combate, a FAB acabou adquirindo um lote de modelos usados da AdA de caças Mirage 2000, uma versão derivada do Mirage III. Os aviões, que começaram a chegar em 2005, apresentam algumas semelhanças operacionais com o Mirage IIIE e serão mantidos em caráter provisório enquanto o Projeto FX-2 não estiver concluído. Nos mais de 30 anos de operação no país, os Mirage III brasileiros jamais sofreram uma modernização profunda e se aposentaram com a mesma aviônica e sistemas eletrônicos com que foram recebidos na década de 1970.

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RUMOS DO PROJETO FX-2
A intenção de comprar caças de quarta geração chegou até 2002 sem um desfecho favorável para a aviação militar brasileira. Apesar de a FAB ter optado pelo sueco Saab Gripen, o longo processo de escolha do FX o tornou ultrapassado frente aos novos aviões que entravam em serviço no período, como os Dassault Rafale, Boeing F/A-18 Super Hornet, o Sukhoi Su-30 e suas variantes, além do F-22, que, mesmo sendo exclusivo da USAF (força aérea norte-americana), elevou a aviação de caça a um novo patamar. O processo foi reaberto em 2006, rebatizado como FX-2. Hoje, apesar da suspensão da concorrência por tempo indeterminado, as três empresas participantes da licitação continuam trabalhando com o intuito de preparar o terreno até que seja retomado o arrastado programa de seleção e compra de novos aviões de caça para a FAB.

A gigante Boeing nomeou, em meados de outubro passado, a ex-embaixadora dos Estados Unidos no Brasil Donna Hrinak para dirigir sua filial brasileira. Esse movimento revela que os norte-americanos pretendem avançar na área política para demonstrar as vantagens em optar pelo avião de combate F/A-18E/F Super Hornet. Iniciativas de aproximação com a indústria brasileira estão em curso e algumas parcerias já estão sendo fechadas com o envolvimento da Boeing, entre elas, a assinada no dia 26 de outubro com a Embraer e com a Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp) para desenvolvimento de biocombustíveis para aviação. Vencer a concorrência FX-2 é uma das metas consideradas cruciais para a Boeing.

A francesa Dassault e a sueca Saab, que oferecem os supersônicos Rafale e Gripen NG, respectivamente, avançam na direção da transferência de tecnologias dando mais alguns passos de aproximação com indústrias e universidades do Grande ABC (SP), principalmente de São Bernardo do Campo (SP), reforçando compromissos nessa área. O consórcio francês Rafale International, por exemplo, organização formada pelos grupos Dassault, Snecma e Thales, fechou acordos com a Faculdade de Engenharia Industrial (FEI), de São Bernardo do Campo, para o compartilhamento de tecnologias. Segundo o diretor da Omnisys (empresa de SBC controlada pela Thales), Luciano Lampi, o convênio permitirá o desenvolvimento de mão de obra de alto nível, com competência local. Um dos focos iniciais do acordo será na área de radiofrequência, mas, no longo prazo, outros segmentos também devem ser contemplados.

O Centro de Pesquisa e Inovação Sueco-Brasileiro (CISB), criado por meio de uma parceria assinada entre a prefeitura de São Bernardo do Campo e a Saab, foi inaugurado em maio último e já colhe os primeiros frutos. A instituição conta com 30 projetos em análise. Entre os que estão em avaliação, 13 são com indústrias, 14 com universidades e três com prefeituras como São Bernardo, Belo Horizonte e Gothenburg, na Suécia. O empreendimento tem como foco as áreas de aeronáutica, defesa e inovação urbana. Além disso, uma das propostas é desenvolver na unidade tecnologias aplicadas em radares.

Colaborou Ivan Plavetz