A interferência da manutenção na segurança de voo

Compilamos 10 recomendações básicas do que fazer antes de decolar para evitar se colocar em risco durante uma missão

Por Humberto Gimenes Branco e Miguel Angelo Rodeguero, especial para AERO Magazine Publicado em 03/09/2013, às 00h00 - Atualizado às 22h36

Os índices de segurança da aviação geral estão piorando, apesar dos esforços no sentido de reverter essa estatística. Enquanto a aviação comercial alcança níveis recordes de sucesso na prevenção de acidentes e incidentes, a aviação geral ainda patina nesse quesito, mesmo sendo o segmento da aviação que mais cresce, notadamente no Brasil. Buscar entender por que os conhecimentos aplicados com êxito na aviação de grande porte ainda não fazem parte do dia a dia da aviação leve pode nos ajudar a explicar a situação e a encontrar caminhos para que comecemos a operar com mais segurança.

Aproximadamente 15% dos acidentes fatais envolvendo aeronaves da aviação geral têm fatores técnicos como causas principais, enquanto 73% dessas ocorrências tiveram a operação como fator contribuinte mais relevante. Esses dados estão na mais importante publicação do gênero, o The Nall Report, produzido todos os anos pelo Air Safety Institute com apoio da Associação de Pilotos e Proprietários de Aeronaves dos Estados Unidos (AOPA-EUA). Bruce Landsberg, presidente da Fundação AOPA e responsável pelo The Nall Report, toca talvez no ponto mais sensível dessa questão: “Muitos pilotos assumem riscos exagerados em seus voos”. Nesse contexto, conhecer e cuidar bem das máquinas que voamos, mais do que uma obrigação “legal”, é algo que precisa fazer parte do dia a dia de quem voa.

Os acidentes da aviação geral com aviões podem ser agrupados em três categorias: os relacionados à operação dos pilotos, aqueles associados a falhas mecânicas e os ligados a outros fatores. Neste artigo vamos nos concentrar nos problemas de manutenção.

Dentre os acidentes causados por problemas mecânicos, 43% estão relacionados a falhas nos motores, 20% a falhas no trem de pouso ou freios, 10% no sistema de combustível e os demais em comandos de voo e estrutura (colisões com pássaros e animais estão nesse grupo).

Falhas mecânicas e manutenção: sua aeronave pode estar te avisando algo. Esteja atento para escutá-la

Entre os especialistas é comum escutar que uma falha mais grave numa aeronave não acontece de uma hora para outra, mas ela vai se agravando até chegar num ponto que pode comprometer a segurança do voo. Por isso, estar atento aos sinais que a máquina dá tem de ser parte da vida de aviadores.

Apontamos abaixo algumas dicas que podem ajudar a pensar a respeito dos seus padrões de operação e sobre quanto risco você pode estar habituado a conviver, talvez sem perceber.

1. Inspeções externas não podem continuar a ser algo feito “rapidinho”. Cerca de 10 minutos são suficientes para se construir uma barreira de segurança. Muitas das possíveis panes mais graves que aviadores enfrentaram poderiam ter sido evitadas com inspeções externas cuidadosas. Tenha em mente que aeronaves são máquinas e como tal precisam ser bem avaliadas antes de entrar em operação. Vazamentos de qualquer tipo, desalinhamentos ou parâmetros incorretos são motivos para você parar, pensar e tomar uma providência. Jamais voe para ver se o que acha ser uma pane de fato é.

2. Motor funcionando asperamente antes da decolagem pode significar que velas ou sistema de injeção não estão operando bem. Uma “checagem de cabeceira” bem feita pode ajudá-lo a tomar a decisão de não decolar quando a aspereza do motor não se altera mesmo com diferentes níveis de mistura.

3. Checagens de magnetos com quedas de rotação além dos limites aceitáveis no manual do motor e da aeronave são motivos para você não decolar. Decolar para ver se o que parece problema é de fato um problema não é uma decisão muito inteligente. Indicações fora dos parâmetros devem ser tratadas no solo, com seu mecânico de confiança, antes de prosseguir para o voo.

4. Quedas acentuadas de potência com aquecedores de carburador abertos também são motivos para não decolar. Os limites estão definidos nos manuais e nos checklists. Qualquer coisa diferente do que está definido nos manuais pode significar vazamento no sistema de aquecimento, que pode comprometer a capacidade do motor em oferecer potência justamente quando você mais precisa dela, numa decolagem ou numa arremetida.

5. Empobrecer muito a mistura pode representar problemas se isso estiver sendo feito fora dos parâmetros indicados pelo fabricante, principalmente em regimes de potência mais elevados. Você deve saber como e quando empobrecer a mistura e como ajustá-la. Quando o ajuste não está bem feito, os motores podem querer mostrar que algo precisa ser feito: redução da potência ou enriquecimento da mistura. Isso também vale para monomotores avançados, que são equipados com motores mais modernos.

6. Não alcançar a rotação mínima definida nos manuais operacionais e checklists quando potência máxima é aplicada na decolagem é razão definitiva para não decolar. De novo, não pague para ver se problemas são de fato problemas quando você já estiver voando. É a sua obrigação saber qual a rotação mínima aceitável na decolagem e que não se decola quando esses parâmetros não estão alcançados, não importa a razão.

Aproximadamente 15% dos acidentes fatais envolvendo aeronaves da aviação geral têm fatores técnicos como causas principais, enquanto 73% desse tipo de ocorrências tiveram a operação como fator contribuinte mais relevante

7. Indicações de pressão e temperatura de óleo fora dos parâmetros normais não podem ser aceitas por aviadores em qualquer fase do voo. Se isso ocorrer antes da decolagem, melhor. A decisão é mais simples: vá investigar com seu mecânico antes de voar. Quando indicações elevadas ou reduzidas de pressão e temperatura aparecerem em voo, o negócio é estar preparado e treinado para lidar com as panes, seguindo religiosamente o que seus manuais e checklists determinam. Em geral, pousar no local apropriado mais próximo e preparar-se para um pouso não programado são as providências mais comuns e corretas. Analisando ocorrências com indicações de temperatura e pressão de óleo fora dos parâmetros normais, é impressionante ver como os pilotos são os maiores causadores de problemas: em geral decolaram com menos óleo do que o necessário ou empobreceram demais a mistura para o regime de potência que estavam empregando.

8. A saúde das suas hélices precisa ser sempre monitorada. O melhor momento para observar isso costuma ser durante as inspeções externas antes dos voos. Você não sabe o que ocorreu entre um voo e outro e a sua hélice pode ter se transformado num perigo, que você só vai descobrir se a conhecer e verificá-la com a atenção que ela merece. Além disso, lembre-se de que, depois de acionar o motor, ela está rodando e se torna um perigo para os outros que estão por perto, sobretudo se você não tiver cuidado e atenção com o que está fazendo, principalmente no táxi. Quando estiver movimentando seu avião no hangar ou no pátio, evite puxá-lo ou empurrá-lo pelas hélices.

9. Barulhos estranhos que nunca existiram ou barulhos comuns que parecerem suspeitos devem ser levados em consideração. A sua aeronave está falando com você. Lei de Murphy: se houver uma chance de algo dar errado, dará. Aeronaves não são como carros e no céu não existem acostamentos. Gerenciar uma emergência não é fácil e para quem voa aeronaves mais modernas, com paraquedas, é importante saber que acionar o artefato é uma opção, mas não uma opção isenta de consequências. Aeronaves que pousam (ou caem) em algum lugar que não seja uma pista ou heliponto sofrem acidentes ou incidentes, com ou sem paraquedas. Pessoas podem se machucar ou perder a vida, dentro do avião ou debaixo dele, propriedades podem ser destruídas e prejuízos causados.

Só pode dizer que opera em segurança quem conhece, acompanha e sabe lidar com as questões técnicas das aeronaves que voa. Isso tem de ser parte do dia a dia de aviadores, não importa se voam a trabalho ou por prazer

10. Checagens externas devem dar atenção aos trens de pouso e freios. Eles não só parecem robustos, como de fato são. A maioria aguenta muito mais do que normalmente um bom aviador faz com eles. Mas mesmo os melhores trens de pouso e freios podem falhar. Vazamentos de qualquer tipo nessa área devem ser investigados. Anéis de vedação podem secar ou enrijecer com o tempo e os vazamentos são resolvidos com reparos simples. Quando os trens de pouso são retráteis, os mecanismos envolvem mais fluidos, mangueiras e conexões. Olhe para todas elas com cuidado. Pastilhas e discos de freios devem ser observados com cuidado e em aeronaves mais modernas, sensores de superaquecimento indicando problemas são itens No Go.

Cuidando bem de motores (e sistemas de ignição e alimentação), hélices, trem de pouso, fuselagem e comandos de voo, especialmente nas inspeções pré-voo, você já está tornando a sua aviação mais segura. Grande parte dos problemas de manutenção causadores de acidentes pode ser identificada e corrigida antes do voo.

Aeronaves são máquinas confiáveis. A vasta maioria das aeronaves da aviação geral voa pelo mundo há décadas, tendo cumprido milhões de horas. Os projetos tradicionais de células e motores não mudaram muito desde a entrada em operação dessa frota mais antiga e isso tem a ver com segurança.

Para quem voa aeronaves de “nova geração”, novos procedimentos precisam ser incorporados ao seu dia a dia. Aeronaves melhores pedem aviadores mais preparados. Sistemas e mais sistemas de navegação, comunicação e alerta de tráfego existem para ser usados, mas não podem significar distração aos princípios básicos da aviação e às responsabilidades que aviadores têm.

Isso tudo vale para aviões de todos os tipos ou helicópteros, homologados ou experimentais, antigos ou de nova geração. Aviadores são aviadores não importa o adesivo que está colado no lado externo da aeronave (no caso dos experimentais). Manutenção e aviação são coisas que andam juntas e o aviador é o responsável por conhecer a saúde das máquinas que voa.

Estar “legal” não necessariamente é estar seguro. Aviões falam com aviadores. É só dar atenção a eles e ao que estão tentando dizer

E aeronaves continuam sendo aeronaves, independente dos equipamentos eletrônicos nela embarcados. Ela existe para ser voada e você, aviador, quer fazer isso porque gosta, porque é seu trabalho ou por ambos. Atribui-se a Chuck Yeager, o primeiro homem a romper a barreira do som, uma frase irretocável: “Você não voa o avião. Ele voa por conta própria. Você tem que saber dizer para onde ele deve ir”. Aviões falam com aviadores. É só dar atenção a eles e ao que estão tentando dizer.

Cuidar bem do avião vai muito além de cumprir IAMs ou outras inspeções obrigatórias. Não é porque você está com “todos os documentos em dia” que está seguro. Segurança de verdade depende de você.

* O piloto e administrador de empresas Humberto Gimenes Branco é diretor da APPA-AOPA Brasil (Associação de Pilotos e Proprietários de Aeronaves) e integrante do Conselho Consultivo da ANAC. O advogado e comandante Miguel Angelo Rodeguero é investigador de acidentes aeronáuticos, GSO (Garantia de Segurança Operacional), bacharel em Aviação Civil e instrutor e checador nas aeronaves da família 737, tendo sido antes no MD-11.

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