O piloto de linha área, sobretudo aquele que almeja cumprir rotas internacionais, precisa dominar o idioma padrão da fraseologia aeronáutica para voar com segurança
Marco Rocha (Rocky), Comandante De Boeing 777 Publicado em 23/01/2012, às 08h08 - Atualizado em 27/07/2013, às 18h45
Qualquer piloto com pretensões de voar em rotas internacionais depende de um bom conhecimento de inglês. Além de ser considerada a língua universal, ela é adotada no mundo inteiro para a troca de informações entre aeronaves e órgãos de controle de tráfego aéreo ou, muitas vezes, entre os próprios voos em áreas com comunicação deficiente. O impacto do uso de um único idioma nas comunicações operacionais de tráfego aéreo, ou mesmo nas de solo – como no caso de um serviço de push back, trabalhos de de-icing e, eventualmente, serviço contra incêndio –, é muito grande. Qualquer mal-entendido ou dúvida pode ter consequências onerosas para a segurança de voo. Basta observar as estatísticas mundiais para constatar, por exemplo, que boa parte de mecânicos e pessoal de apoio que sofreu ferimentos graves ou mesmo perdeu a vida se acidentou em simples procedimento push back.
Os manuais de operação e manutenção das aeronaves estrangeiras também são escritos em inglês, com raras exceções – o cliente pode até optar por uma versão especial, mas os preços são proibitivos. A nomenclatura de sistemas, peças e procedimentos também seguem, quase em sua totalidade, o idioma inglês, mesmo para aeronaves de outras nacionalidades que não a inglesa, americana ou canadense. Temos como exemplo as aeronaves fabricadas pela Airbus Industrie, nas quais tudo o que se lê está escrito na língua inglesa e não em francês, apesar de os aviões serem fabricados por um grupo de origem francesa. O mesmo acontece com os aviões fabricados no Brasil pela Embraer, que também apresentam manuais e nomenclaturas de sistemas em inglês. Nos cockpits, igualmente, os procedimentos são todos executados com chamadas em voz alta em inglês, incluindo a leitura de um checklist ou o acompanhamento das ações de uma fase do voo. O que se fala é “flap one” e não “flape um”; ou “speed brake” e não “freio de velocidade”; ou, ainda, “rotate” e não “rodar”. Assim, fica fácil entender o porquê de o inglês ser tão exigido de qualquer candidato a uma posição de piloto numa linha aérea e, principalmente, se ele irá operar em voos para o exterior, nos quais só se fala inglês. A título de curiosidade, soube de alguns casos em que a companhia aérea tentou colocar intérpretes na cabine de comando e os resultados foram desastrosos, chegando muito próximos de um acidente aéreo.
No Brasil, mesmo com a adoção de ensino da língua inglesa em colégios e com o grande número de cursos específicos, por uma questão financeira e mesmo cultural, a população, em sua grande maioria, não tem bom domínio do idioma. Além disso, quando falamos de um piloto novo, o que pesa mais na hora do investimento inicial na carreira são os custos das horas de voo de instrução. Qualquer curso adicional logicamente ficará para o segundo plano. E mesmo quando o aviador consegue o seu primeiro emprego, ele certamente estará empenhado em conseguir voar bastante para acumular experiência, visando conseguir o mínimo para disputar uma vaga em linha aérea. E, novamente, o inglês acaba ficando para outra oportunidade. Gostaria de render aqui um elogio às faculdades que ministram o curso de Ciências Aeronáuticas e contemplam em seu currículo aulas específicas de fraseologia, incluindo-se em algumas o Tráfego Aéreo Internacional (TAI) – que permite ao aluno se familiarizar com o uso do inglês na fonia, enquanto também passa a trabalhar com material de navegação da Jeppesen, que é o principal standard internacional em termos de cartas aéreas.
NÍVEL ICAO DE PROFICIÊNCIA
O conceito da comunicação pressupõe um transmissor, um meio e um receptor. Mas a eficiência dessa cadeia depende do correto entendimento do que se quer comunicar. O simples transmitir não garante um correto entendimento. O nível de proficiência no uso da língua vem sendo estudado há muito tempo, em incontáveis situações. Muita gente de altíssimo nível nessa área foi convocada para analisar os diversos aspectos de uma avaliação oficial. O nível de conforto de todos é muito grande quando se opera em um ambiente em que só uma língua é falada. Na Alemanha, por exemplo, todos os contatos são feitos em inglês, mesmo entre pilotos e controladores de voo nativos. Porém, quando o inverso ocorre, o desconforto logicamente é muito grande. Os pilotos estrangeiros que voam para o Brasil mal entendem o que o controlador de voo fala e também não sabem o que está acontecendo ao seu redor, já que os pilotos brasileiros dificilmente falam no rádio na língua inglesa. Bom seria se todos falassem em inglês.
No final da década de 1990, membros da Flight Safety Foundation, da Iata (Associação do Transporte Aéreo Internacional) e da Icao (Organização da Aviação Civil Internacional) passaram a se reunir para estabelecer formas de avaliar os níveis de proficiência da língua inglesa de pilotos e controladores de voo. Assim, surgiram os níveis Icao de proficiência, cuja nota máxima é 6 e apenas pilotos que tenham médias entre 4 e 6 podem voar para qualquer país do mundo sem restrições.
O grande problema para companhias aéreas no Brasil é que o pessoal mais antigo, na época de sua contratação, não passou por avaliações rigorosas de proficiência na língua inglesa, até pelo próprio cenário de operação da empresa. Porém, com o alçar de voos mais altos, esses aviadores passaram a atender linhas intercontinentais e, aí, as dificuldades aumentaram significativamente. As formas de se lidar com isso variam de empresa para empresa, mas em algumas os resultados não foram os esperados e muita gente antiga se viu prejudicada. Ocorre que, por mais doloroso que seja, precisamos de gente capacitada no cockpit porque a história da aviação já está recheada de acidentes envolvendo falhas de comunicação e entendimento da língua inglesa, por parte tanto dos aviadores como dos aeroviários.
ARREMETIDA IMEDIATA
Situação emblemática aconteceu com um Boeing 707 da Avianca, durante aproximação para Nova York. Por deficiência de comunicação dos pilotos colombianos com os controladores de voo, o jato não recebeu a adequada prioridade para pouso e acabou caindo por falta de combustível, a chamada pane seca. Vale lembrar, também, da transcrição de um CVR (Cockpit Voice Recorder) de uma aeronave chinesa. Nela, segundos antes do impacto, um dos pilotos se perguntava, em chinês, o que queria dizer woop woop pull up, que nada mais é do que o alarme do sistema GPWS sugerindo arremetida imediata. Lembro-me de uma vez, nos tempos áureos da Força Aérea, em que voava um C-115 Búfalo e tive uma pane séria de falha de motor com fogo e extrema vibração, logo depois de sair da terminal de Brasília em voo para a Base Aérea de Afonsos, no Rio de Janeiro. Transmitimos ao Centro Brasília (ACC) a mensagem internacional de emergência em inglês, ou seja, o termo mayday, informando a situação para o controlador também na língua inglesa, já que estávamos mantendo a comunicação em inglês o tempo todo. O controlador simplesmente se limitou a responder “Roger” (ciente) e nos transferiu para o Controle de Aproximação (APP) de Brasília. Acabamos desistindo e nos comunicamos durante o resto do voo em português. Agora, imagine se essa situação acontece com um piloto estrangeiro…
Qualquer mal-entendido durante a comunicação entre cabine e controladores de voo, ou mesmo entre pilotos, pode ter consequências onerosas para a segurança de voo
Ao se usar a fraseologia internacional em inglês, o correto é manter o padrão, sem usar preposições inadequadas ou adaptar uma língua para outra. Esses improvisos podem até transparecer proficiência, mas dão muita chance a confusões e mal-entendidos. Como exemplo, temos a expressão up to, que é muito diferente de “acima de”, como pensam muitos, e já gerou muita confusão. A própria pronúncia de expressões inglesas, se mal feitas, pode trazer algumas armadilhas, como no uso de roll (correr) em vez de hold (manter), que foi um dos fatores contribuintes associados ao acidente de Tenerife envolvendo dois Boeing 747. Como dica, para os pilotos que não estão muito afiados no inglês, mas procuram transmitir as informações aos órgãos de controle no exterior com muita rapidez, querendo aparentar ser um expert da língua inglesa, procurem rever seus conceitos. Isso porque o controlador não hesita em responder na mesma velocidade, já que pressupõe que o seu interlocutor é fluente e familiar com a língua dele e fará uso dela sem restrições.
Mesmo com o advento do sistema de transmissão de mensagens de comunicação via CPDLC, a ocorrência de mal-entendidos ainda não foi eliminada. A correta grafia de certos termos é importante e qualquer tipo de mensagem transmitida com erros pode trazer distrações ao cockpit. Digo isso porque, não muito tempo atrás, a transmissão de uma mensagem de D-ATIS num aeroporto internacional no Brasil continha um erro de grafia em inglês da palavra available e isso a tornou incompreensível para pilotos estrangeiros. E o pior: foi motivo de risos e decorrente distração. Diversas mensagens CPDLC são rejeitadas em certas áreas de operações no mundo, quando o sentido não está absolutamente claro, reduzindo a velocidade e a eficácia do sistema.