Fortaleza desarmada

Os B-17, primeiros quadrimotores do inventário da FAB, usados exclusivamente em missões de paz, inauguraram as atividades de busca e salvamento no Brasil

Paulo F. Laux Publicado em 14/06/2012, às 07h02 - Atualizado em 27/07/2013, às 18h45

Nenhum outro bombardeiro estratégico de longo alcance angariou tantos méritos quanto o Boeing B-17 Flying Fortress, desenvolvido especialmente pelos norte-americanos para bater de frente contra os enxames de caças da Luftwaffe que costumavam atacá-los furiosamente enquanto bombardeavam o território alemão.

Nada menos que 12.677 dessas Fortalezas Voadoras foram construídas e distribuídas aos esquadrões da então USAAF (Força Aérea do Exército dos Estados Unidos), principalmente. Considerando que cada um desses bombardeiros vinha dotado, em média, com 12 metralhadoras .50, entre julho de 1940 e agosto de 1945, a indústria norte-americana colocou no ar 152.124 metralhadoras Browning M2, apenas para dar tratos à autodefesa dessas aeronaves. Considerando, ainda, que a missão principal dessa formidável máquina de guerra tinha como objetivo o bombardeio sistemático de cidades alemãs inteiras, literalmente dizimadas juntamente com os eventuais alvos militares que abrigassem em seus arredores, o poderio de fogo dessa frota aérea de quadrimotores podia aproximar- se de 45 mil toneladas de bombas de diferentes tipos e portes. Algumas fontes confiáveis indicam que de cada três bombas lançadas sobre território alemão, pelo menos uma foi transportada a bordo de um B-17. E olha que teriam sido algo como 500 mil!

Afora a grande capacidade de carga, os projetistas haviam se preocupado com a sobrevivência do equipamento e das tripulações, o bem mais precioso de todos. Por onde quer que um caça alemão se dispusesse a atacar uma Fortaleza Voadora, iria fatalmente encontrar um artilheiro mascando chiclete disposto a disparar até o último cartucho para abatê-lo a um ritmo alucinante de 750 tiros por minuto. Havia torres pesadamente armadas espalhadas pela empenagem, ao longo do extradorso, no intradorso, na proa e em ambos os lados da fuselagem de 22,65 metros de extensão. Só não se viam armas fixadas nas asas, cuja envergadura alcançava os 31,62 metros. Os quatro motores radiais de nove cilindros Wright R1820-97 Cyclone, de 1.200 HP, garantiam ao B-17 a velocidade máxima de 462 quilômetros horários, embora o regime de cruzeiro adotado durante os raides de ataque ao território inimigo oscilassem em torno dos 290 km/h em média.

FORTALEZA SEM ARMAMENTO
Passados seis anos após o fim da guerra, entre os anos de 1951 e 1969, a Força Aérea Brasileira operou 13 Fortalezas Voadoras do modelo B-17G. Mas, curiosamente, as máquinas de guerra que foram transferidas para o Brasil por meio dos programas de assistência militar, que iam buscar nos depósitos a céu-aberto norte-americanos o que havia sobrado ainda inteiro da guerra, não traziam um único armamento sequer. Pelo contrário, de temíveis bombardeiros que faziam tremer os alicerces da Luftwaffe, haviam agora se transformado em aeronaves voltadas para a realização de missões de reconhecimento fotográfico, e de Busca e Salvamento - SAR, explorando o que o equipamento oferecia de melhor em tempos de paz, que era o seu extraordinário alcance em voo.


ENTRE 1951 E 1969, A FORÇA AÉREA BRASILEIRA OPEROU 13 FORTALEZAS VOADORAS DO MODELO B-17G

A técnica da aerofotogrametria, que ainda hoje é praticada pela Força Aérea Brasileira com o emprego de tecnologia e aeronaves de última geração, tem como objetivo confeccionar mapas topográficos de alta precisão com base em varreduras da fotografia aérea. Entre as finalidades principais estão os levantamentos geológicos de riquezas minerais - petróleo, urânio, ouro, cobre; o planejamento e construção de estradas e cidades; a elaboração de cartas geográficas e náuticas, e tantas outras. Embora os custos não sejam baratos, desde 1951 a FAB vem fotografando sem alardes e nenhuma publicidade todos os rincões do Brasil.

A Fortaleza Voadora Boeing B-17G foi a primeira aeronave quadrimotor operada pela FAB, instituição que, então com somente dez anos de vida como organização autônoma, ainda carecia de maior experiência em diversas áreas. Entre elas, a formação de pessoal de voo com qualificação para operar em aviões de maior porte. As tripulações da FAB eram recrutadas e treinadas no Centro de Treinamento de Quadrimotores (CTQ), então recém-criado na Base Aérea do Galeão, no Rio de Janeiro, mas que em seguida seria transferido para a Base Aérea de Recife (PE). O Brasil havia assumido o compromisso junto à Convenção da Organização de Aviação Civil Internacional - OACI, cujo artigo 37 previa a prestação de amplo apoio aéreo de Busca e Salvamento aos aviões comerciais que cruzassem o Atlântico Sul. E a base desse serviço deveria estar localizada necessariamente no Nordeste brasileiro.

Ademais, o país possuía mais de 7.000 quilômetros de litoral e uma plataforma continental de dimensões agigantadas mesmo antes da vigência do decreto-lei de março de 1970, que alteraria os limites do mar territorial brasileiro de 12 para 200 milhas, ampliando os limites da soberania nacional para 2.775.150 quilômetros quadrados.


NO LUGAR DE DUAS METRALHADORAS BROWNING M2 .50, OS B-17 DA FAB POSSUÍAM RADARES DE BUSCA PARA SALVAR VIDAS


B-17 Serviço de Busca e Salvamento, cujas principais atribuições eram as missões de busca para a localização de aeronaves desaparecidas em terra ou no mar, e a missão de socorro e resgate de sobreviventes em acidentes de qualquer natureza


RADAR EM VEZ DE METRALHADORA
O Serviço de Busca e Salvamento surgia ainda como uma atividade relativamente nova no meio civil. A primeira ideia de organização funcional nasceu em 1939, na Alemanha, durante a guerra, com a finalidade de efetuar a busca e o resgate de pilotos acidentados ou abatidos em combates aéreos. O exemplo alemão foi logo seguido pela Inglaterra, em que passou a envolver também a Marinha, o Exército e outras entidades. No âmbito internacional, a atividade nasceu na Convenção da Organização da Aviação Civil Internacional, realizada em Chicago, em 1944, e que quatro anos depois passou a ser discutida mais intensamente no Brasil. Os países signatários da Convenção assumiam a responsabilidade de prestar pronta-assistência a aeronaves em situações de perigo e a sobreviventes, independentemente da nacionalidade da aeronave ou de quem estivesse necessitando de socorro. Os signatários também deveriam cooperar com os responsáveis pela investigação de acidentes de aeronaves e com os que tiverem o encargo de cuidar dos feridos e mortos.

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Quando o serviço finalmente tornou-se uma realidade em Recife, a partir da constituição do 1º/6º Grupo de Aviação (SAR), no mesmo ano foi instalado na Base Aérea de Cumbica, em São Paulo - onde mais tarde seria erguido o Aeroporto Internacional de Guarulhos -, o 2º/10º Grupo de Aviação (SAR), este equipado com aviões anfíbios Grumman SA-16A Albatroz e helicópteros Sikorsky H-19, além da seção de aviões sediados em Belém (PA), para poder atender mais prontamente às missões solicitadas na região amazônica. Ontem e hoje, entre outras, as principais atribuições do Serviço de Busca e Salvamento continuam sendo as missões de busca para a localização de aeronaves desaparecidas em terra ou no mar, e a missão de salvamento (socorro e resgate de sobreviventes), não só em acidentes de aviação, como em outros de qualquer espécie.

Em lugar da torre original de metralhadoras existente na proa da aeronave, as B-17G destinadas ao SAR no Brasil eram equipadas com um radar de busca em forma de cone. Em missões de busca sobre o mar, traziam também dependurado sob a fuselagem um bote metálico A-1 de porte médio, com 8,10 metros de comprimento, para ser lançado de paraquedas, normalmente de uma altura de 1.200 pés sobre a área onde houvesse sobreviventes. Devidamente equipado, o bote motorizado com dois Higgins costumava pesar por volta de 790 quilos.

Em 1º de setembro de 1953, o B-17 foi o primeiro avião militar brasileiro a completar a travessia do Atlântico Sul decolando da Base Aérea da capital pernambucana com uma única escala técnica em Natal (RN). De Dacar, na costa africana, a aeronave retornou ao Brasil percorrendo a mesma rota. Embora ainda se tratasse apenas de um voo experimental de treinamento, a missão serviu como uma prévia para tudo o que viria pela frente anos depois.

PACIFICAÇÃO EM GAZA
Em 1957, enquanto o 6º GAv era comandado pelo tenente-coronel-aviador Délio Jardim de Mattos, foi instituída uma linha mensal do Correio Aéreo Nacional - CAN, desde Recife para Suez, no Egito. A finalidade da linha era a de garantir o apoio logístico necessário ao Batalhão do Exército Brasileiro destacado naquele local a serviço das Nações Unidas (United Nations Emergency Force) para a pretensa pacificação da região da Faixa de Gaza. Afora a atividade de transporte em si, essas viagens agregavam também o caráter de instrução de voo, imprescindível às novas tripulações em voos de longa duração sobre o mar.

Em 29 de março de 1957, o 1º CAN SUEZ - como o serviço foi identificado -, deixou o Brasil rumo ao Oriente Próximo, com a antiga Fortaleza Voadora transportando pequenos volumes de carga e malotes de correio para a tropa do Exército Brasileiro estacionada na região. A aeronave utilizada, o B-17 FAB 5405, cumpriu a seguinte rota: Rio - Recife - Dacar - Lisboa - Roma - Abusir, no Egito. A "escolha" do equipamento B-17 fora apenas uma formalidade burocrática, pois à época era de fato a única aeronave do inventário da Força Aérea com capacidade para transpor o Atlântico Sul. A partir da segunda viagem, as aeronaves passariam a pousar em El Arish em vez de Abusir. Ao todo foram completadas 24 viagens redondas até Suez. As B-17 do 6º GAv transportaram 50.856 quilos de carga e malas postais, totalizando 2.071 horas de voo, sem que tivesse ocorrido nenhum incidente. O último CAN SUEZ realizado pelos "bombardeiros" do 6º GAv deu-se em 14 de maio de 1960. Em virtude da incorporação dos aviões Douglas C-54, a FAB preferiu transferir para o 2º Grupo de Transporte a missão do "Correio de Suez".


EMBORA OS CUSTOS NÃO SEJAM BARATOS, DESDE 1951 A FAB VEM FOTOGRAFANDO SEM ALARDES E NENHUMA PUBLICIDADE TODOS OS RINCÕES DO BRASIL

Um ano antes da sua desativação, a Força Aérea Brasileira ainda dispunha de seis B-17 formalmente operacionais, dentre os quais o que levava a matrícula 5400. O mais antigo de todos ainda em operação em todo o mundo. A preciosidade despertou rapidamente o interesse da Força Aérea dos Estados Unidos (USAF), que passou a "mexer os pauzinhos" para obtê-lo de volta em perfeitas condições de voo, tal como se encontrava. E acabou conseguindo: o Boeing B-17 5400 seguiu em voo rumo aos Estados Unidos, destinado a ocupar um lugar de honra no precioso acervo do Museu Nacional da USAF, em Wright-Patterson. Depois que a direção do museu optou em substituí-lo por outro exemplar do B-17F, mais guerreiro e que havia comprovadamente participado de batalhas aéreas sobre a Europa, o 5400 foi realocado para o Yesterday's Air Force Kansas Warbird Museum - um dos quase 300 museus aeronáuticos existentes nos Estados Unidos -, em Chino, na Califórnia, rematriculado como N-47780.

O único exemplar do B-17 preservado inteiro no Brasil permanece em exposição ao ar livre em frente à entrada principal da Base Aérea de Recife, onde todos eles estiveram baseados enquanto operacionais. Uma segunda unidade foi transferida, desmontada, para o Museu Aeroespacial da Força Aérea Brasileira - Musal, no Rio de Janeiro (RJ), onde permanece aguardando pelos recursos necessários que permitam a sua completa recuperação.