Com mais dúvidas do que certezas em torno da certificação do eVTOL, mercado aposta alto na mobilidade aérea urbana
Por Edmundo Ubiratan Publicado em 20/09/2023, às 16h00
Enquanto autoridades aeronáuticas de todo o mundo debatem os complexos processos de certificação dos veículos aéreos de pouso e decolagem verticais, conhecidos como eVTOL, os engenheiros buscam soluções urgentes para a eletrificação dos sistemas de propulsão. Já o mercado de aviação, a despeito das incertezas, aposta alto nas oportunidades em torno dos cada vez mais badalado eVTOL.
Os primeiros estudos em torno das novas aeronaves nasceram de uma proposta de incrementar o deslocamento urbano com base em plataformas digitais de compartilhamento.
Não por um acaso, a Uber foi uma das primeiras empresas a acreditar no conceito. Uma década depois, o eVTOL ampliou seus horizontes, com dezenas de projetos em andamento, inclusive de grandes fabricantes, como a EVE, divisão da Embraer; Bell; Airbus; e diversas startups.
O conceito chamou a atenção também de empresas aéreas, que enxergam uma oportunidade adicional de negócios. O irônico é que a Uber, embora tenha incentivado os primeiros estudos, desistiu do projeto, concentrando-se em tornar lucrativa suas operações terrestres.
Recentemente, as principais empresas aéreas do mundo passaram a assinar memorandos de entendimento com fabricantes tradicionais, como a Embraer, assim como com startups criadas unicamente com o propósito de explorar esse mercado. A United Airlines foi a primeira grande companhia aérea dos Estados Unidos a demonstrar interesse no conceito eVTOL. Uma parceria estratégica foi formada com a starup Archer, incluindo um investimento de capital e um pedido para até 200 veículos aéreos urbanos, que podem somar até um bilhão de dólares.
Na ocasião, a expectativa da Arche era certificar seu eVTOL junto à Federal Aviation Administration até 2023, mas até o momento sequer existe um protótipo capaz de cumprir requisitos existentes de homologação.
Ainda assim, o fabricante realizou a fusão com a empresa de aquisição de propósito especial (SPAC) Atlas Crest Investment Corp, que deverá gerar 1,1 bilhão de dólares em receitas brutas, e render no curto prazo até 3,8 bilhões de dólares.
O movimento chamou a atenção do mercado, com a American Airlines, atualmente a maior empresa aérea norte-americana, anunciando um acordo de um bilhão de dólares com a Vertical Aerospace para até 250 eVTOL.
Não demorou para empresas aéreas de todo o mundo, incluindo companhias especializadas em voos privados ou compartilhamento de aeronaves, notarem o potencial do mercado eVTOL. Logo, ficou claro que existe uma série de oportunidades no segmento.
A Embraer conta com uma divisão dedicada exclusivamente ao mercado eVTOL, batizada EVE. Ao longo dos últimos dois anos, diversos acordos foram formalizados ao redor do mundo, visando criar não apenas um mercado novo, mas viabilizar sua operação e regulamentação.
No Brasil, a Helisul fechou um acordo com a EVE em junho de 2021, definindo como foco uma parceria voltada para a criação de um ecossistema de Mobilidade Aérea Urbana (UAM, na sigla em inglês) no Brasil.
O acordo prevê a criação de uma plataforma de mobilidade aérea urbana no país, utilizando uma prova de conceito (POC, na sigla em inglês) baseada em helicópteros para a validação de parâmetros futuros, incluindo gerenciamento de tráfego aéreo, ruído, viabilidade de destinos, entre outros.
A Helisul realizou, ainda, um pedido para até cinquenta eVTOL da EVE, que devem ser entregues em meados de 2026. Paralelamente, a Embraer avançou em uma parceria ampla para verificar a viabilidade do conceito em grandes cidades, incluindo Cingapura e Rio de Janeiro. No caso da cidade brasileira, a iniciativa conta com a participação da Anac e do Decea, que, em parceria com a EVE, vão avaliar a infraestrutura existente e as soluções de gerenciamento do tráfego aéreo para permitir operações no Brasil.
Além disso, servirá como base para a criação de tecnologias adicionais de gerenciamento de tráfego e de controle dos eVTOL. A parceria incluiu a participação da RIOgaleão, concessionária que administra o aeroporto internacional do Rio de Janeiro e da Associação Brasileira de Aviação Geral (Abag).
Outro importante acordo envolveu a Flapper para estudos de viabilidade para o desenvolvimento de mobilidade aérea urbana na América Latina, em especial para o Brasil. A empresa brasileira de voos sob demanda terá como foco as cidades de São Paulo, Rio de Janeiro e Belo Horizonte, além das principais cidades do Chile, do México e da Colômbia. A Flapper poderá operar até 25 destas aeronaves e o fornecimento de até 25 mil horas de voo nas localidades que serão partes do contrato.
Ainda no Brasil, a Azul saiu na frente entre as empresas aéreas ao negociar um acordo com a alemã Lilium, que pode atingir a marca de um bilhão de dólares para a aquisição de 220 eVTOL, que devem ser entregues até 2025. A intenção é criar um novo tipo de negócio dentro da já vasta malha aérea da empresa aérea. Além de investir em rotas sub-regionais, operadas com o Cessna Caravan, a Azul acredita no potencial de voos de curta duração entre grandes centros urbanos, por exemplo, Campinas e São Paulo.
A Gol respondeu ao movimento da rival semanas depois, formalizando um acordo “não vinculante” com a empresa de leasing Avolon para a aquisição ou arrendamento de 250 eVTOL do modelo VA-X4, desenvolvido pela britânica Vertical Aerospace. A intenção também é apostar no mercado aéreo das grandes áreas urbanas, além de pares de cidades que não podem ser atendidos pela aviação comercial, distantes menos de 100 quilômetros.
A Japan Airlines, que é considerada uma das empresas mais conservadoras no transporte aéreo, sempre atuando em mercados consolidados, também fechou um acordo com a Avolon, para até cinquenta VA-X4. A ideia é atender as grandes cidades japonesas, que sofrem há várias décadas com a superlotação nos meios de transporte e o trânsito intenso. A proposta poderá ajudar a criar uma solução para a mobilidade entre pontos distantes dentro de uma mesma cidade, ao mesmo tempo que pode abrir novas perspectivas de negócios para a empresa aérea, considerando o transporte de passageiros VIP ou classes de cabine superiores, entre a cidade e o aeroporto (e vice-versa) de forma eficiente e com menor custo quando comparado a helicópteros.
O movimento de ampliação do uso de eVTOL tem sido uma tendência em diversos segmentos. A Halo, companhia de táxi-aéreo com operações nos Estados Unidos e no Reino Unido, também assinou um acordo com a EVE para até 200 aeronaves. Além disso, o documento prevê um trabalho conjunto para novas operações de eVTOL tanto nos Estados Unidos como na Inglaterra, incluindo um projeto de gestão de tráfego aéreo urbano e de frotas.
A também britânica Bristow Group Inc., que atua especialmente em mercados offshore, assinou um memorando de entendimento (MoU) para atuar no desenvolvimento de um certificado de operador aéreo (AOC) para a aeronave da EVE. A empresa inicialmente planeja operações urbanas em cidades como Londres, mas não descarta que, dependendo do grau de segurança e autonomia proporcionado pelos eVTOL, poderá utilizar a plataforma até em missões em alto-mar.
A questão de segurança é ainda um fator primordial para o conceito, que surgiu considerando voos completamente autônomos, mas deverá começar com voos single-pilot. Um dos motivos é a inexistência de uma tecnologia de inteligência artificial robusta o bastante para permitir uma operação segura.
Ainda esbarra no problema do porte dos hardwares para um software de aprendizado de máquina tão poderoso. O uso de energia elétrica nos motores deverá consumir basicamente toda a carga disponível, deixando poucas margens para um sofisticado conjunto harware/software de voo autônomo.
Ainda assim, os principais fabricantes de aviônicos do mundo também trabalham em um sistema que seja leve e eficiente para uso em voos pilotados por humanos.
A Honeywell trabalha em um sistema completo, desde controle até pilotagem, passando pela aviônica e sua relação homem-máquina. Uma das especulações é que o sistema projetado para o recém-lançado Falcon 10X, que permitirá voo single-pilot em nível de cruzeiro, poderá ser o ensaio inicial para um futuro conceito autônomo.
Segundo engenheiros que trabalham no projeto eVTOL, a aviônica será um dos pontos mais críticos do projeto, pois envolve desde peso e consumo de energia até a configuração que permitirá que os dados sejam exibidos ao único piloto.
As informações deverão ser claras o suficiente para permitir que o piloto tenha a máxima consciência situacional em um ambiente complexo e com poucas margens de erro, como é o caso exatamente de áreas urbanas densamente povoadas, como São Paulo, Nova York ou Londres.
Além disso, é pouco provável que, no intervalo de apenas quatro ou cinco anos, exista massa crítica suficiente para embarcar em aeronaves elétricas controladas por sistemas autônomos. A tendência é que a popularização do eVTOL dependa da criação de uma demanda que justifique sua existência para, na sequência, surgirem modelos pilotados remotamente.
Uma analogia simplista seria com os trens do Metrô, que rodam sem operador, com todo processo sendo gerenciado do centro de controle. Apenas quando houver confiança no veículo é que os fabricantes e as empresas devem cogitar os modelos autônomos.
Por fim, mas não menos importante, os processos de certificação ainda estão em uma fase inicial, com mais dúvidas do que soluções ao redor do mundo. Mesmo com aviões elétricos já certificados, não existe ainda uma documentação completa para testar e validar um eVTOL, que conta com novo tipo de motor, conceito inédito de propulsão, uso extensivo de baterias e possibilidade de motorização híbrida, também inédita.
Mesmo a estrutura do veículo terá de ser submetida a uma inédita campanha de validação, visto que, ao contrário de um helicóptero, um eVTOL provavelmente não poderá realizar um pouso minimamente controlado em caso de perda dos motores, ou mesmo em uma assimetria entre os vários rotores.
O pouso deverá ocorrer em uma área urbana, densamente povoada e com o menor dano possível tanto para quem estiver dentro como fora da aeronave. Existe uma proposta de usar eixos entre os vários rotores, em uma proposta similar ao adotado pelo V-22 Osprey. O problema ainda é como levar um eixo de transmissão dentro dos modelos até agora apresentados.
Não por um acaso, empresas especializadas em helicóptero se tornaram parceiras naturais dos fabricantes, como a australiana Microflite, uma das principais operadoras de helicópteros daquele país, que também se tornou parceria da EVE. O acordo contempla o desenvolvimento de novos serviços e procedimentos, que poderão criar um ambiente operacional seguro e escalonável para as operações.
O segmento atraiu atenção até mesmo de fabricantes do setor automotivo, como a gigante japonesa Honda. Ainda que conte com uma divisão de aviação de negócios, o projeto do eVTOL deverá ser conduzido por uma área à parte.
Um dos trunfos planejados é aproveitar a ampla expertise em motorização híbrida e elétrica já existente nos automóveis e replicar, com os devidos ajustes, ao setor aéreo.
Por ora, existem muitas oportunidades e desafios, especialmente considerando que a intenção é que os primeiros eVTOL entrem em serviço em 2025 ou 2026, prazos audaciosos considerando a real situação dos projetos.
Projetos baseados em conceitos consolidados, como um avião certificado, tem um período de gestação, testes, certificação e início das operações, que podem facilmente chegar aos dez anos.
Será um dos maiores feitos da indústria aeronáutica conseguir cumprir um cronograma tão apertado e com desenvolvimento extremamente complexo. Mas as ofertas estão na mesa e o mundo espera ansioso a chegada dos “carros voadores”.