Acidentes como o da Air France em 2009, e provavelmente o da AirAsia em 2014, alertam para a necessidade de treinamento da perda de sustentação em nível de cruzeiro
Por Miguel Angelo Rodeguero Publicado em 22/02/2015, às 00h00
Aeronaves voam enquanto têm velocidade. Não exatamente por isso, mas pelas consequências que o deslocamento rápido através da atmosfera provoca nos aerofólios. Ao passar pelas superfícies superior e inferior da asa, o ar provoca uma diferença de pressão entre o intradorso e o extradorso da aeronave justamente pela diferença do perfil. Essa é uma explicação simples para a sustentação, uma das forças que fazem com que um avião se mantenha voando. Tal sustentação existe apenas enquanto os filetes de ar passam pela asa de forma contínua, sem turbilhonamentos.
Quando tem seu “nariz” comandado para cima, a aeronave sobe, até determinado ponto. Entretanto, se esse movimento para cima continuar e ultrapassar o ângulo em que os filetes de ar se escoam, o ar que passa pela parte de cima da asa turbilhona – descontinuado –, a sustentação começa a ser perdida e a velocidade cai. Essa é uma explicação bem simples para o estol, ou stall.
A recuperação só é possível havendo o realinhamento dos filetes de ar que passam pelas asas. No caso do estol de baixa velocidade, o ângulo de elevação das asas em relação à linha do horizonte deve ser diminuído e a velocidade da aeronave, aumentada. Se for um estol de alta velocidade, esta precisa ser diminuída enquanto o nariz da aeronave tem de voltar à linha do horizonte ou próximo a ela. Os filetes de ar se alinham ao redor dos aerofólios e o voo é retomado. Para que ocorra dessa forma, o piloto tem de interferir.
O estol pode ocorrer em qualquer altitude, porém, quanto mais alto o voo, menor é a margem antes que seja atingida a velocidade mínima para manter-se voando e maior o tempo necessário para a recuperação das características, pela menor densidade do ar. Por outro lado, quanto mais baixo, maior o risco de colisão com o solo.
Esse assunto foi bastante discutido depois do acidente com o A330, da Air France, em voo do Brasil para a França. Voltou à baila com um novo acidente, agora com um A320 da AirAsia, que caiu no mar. Em ambos os acidentes, uma característica de estol em altitude. Bastante provável que isso tenha ocorrido novamente e por motivos técnicos, materiais: no A330 teria havido o congelamento dos tubos que coletam a pressão aerodinâmica e estática e transmitem os dados aos computadores para que os números relativos a velocidades e altura tornem-se conhecidos dos pilotos. Quanto ao A320 da AirAsia, ainda não há informações conclusivas, mas, pelas características do evento, é possível ter havido algo semelhante, talvez por motivos diferentes. Independentemente do que tenha havido na Ásia, as informações já disponíveis são suficientes para se afirmar que, até o momento do acidente, tudo corria normalmente, sem problemas relatados pelos pilotos.
Sabemos que o A330 da Air France perdeu sustentação e caiu, com todas as características de estol, do nível de cruzeiro até o oceano. O que levou a isso? No caso do Atlântico Sul, as informações transmitidas aos equipamentos tornaram-se imprecisas, fazendo o avião perder sustentação pela atitude em que foi levado a voar. Depois disso, houve pouco entendimento entre os pilotos acerca da real situação da aeronave, e ela caiu “estolada”.
No caso da aeronave da AirAsia, ainda não sabemos exatamente o que aconteceu, mas pode ter havido uma situação de estol por informações imprecisas ou por perda de potência nos motores. Sabemos que foi plotada uma posição pelos radares, pouco antes do acidente, em que a velocidade havia diminuído de forma pouco usual para a situação de voo. Entretanto, por si só, essa redução de velocidade não provocaria a queda, a menos que fosse uma tendência que tenha se prolongado.
As informações disponíveis nos mostram que os pilotos solicitaram subir para níveis mais altos, provavelmente para desviar por cima de formações de nuvens pesadas. A região estava com tempo bem ruim, talvez com turbulência, ventos fortes, eventualmente granizo. Em ambiente com mau tempo, desviar por cima não é uma manobra aconselhável. A nuvem pode influir decisivamente nas condições acima dela, com ventos, gelo, granizo. Pode, também, em algumas condições, provocar cristais de gelo, que aderem aos motores internamente, são indetectáveis e podem provocar quebras internas com perda de potência. Havendo perda de potência em um ou nos dois motores em altitude, o voo não se mantém em níveis elevados. Em casos assim, aplica-se imediatamente potência máxima no motor remanescente e inicia-se uma descida para níveis mais baixos, onde a performance da aeronave permita que o voo se mantenha. Esse nível mais baixo está relacionado diretamente ao peso total na hora da perda de potência. Atingido esse nível mais baixo, o voo prossegue até um aeródromo mais próximo e o pouso é feito com um motor funcionando.
Se o problema ocorre em ambos os motores, porém, não há nada a fazer senão baixar de forma controlada a aeronave, tentando acionar um ou os dois motores. Recuperado um deles, o voo se mantém. Sem nenhum, o voo continua controlado em descida contínua, até encontrar o solo ou a água. Se a descida acontecer dessa forma, pode haver um pouso controlado na água. Nesse caso, não haveria o esfacelamento total da fuselagem.
Voltando ao caso do Air France, os motores estavam funcionando, mas a atitude da aeronave em relação ao horizonte fez com que a velocidade caísse, a ponto de “estolar”. Mantido o nariz do avião para cima, os motores não conseguiram preservar atitude e velocidade. Com a diminuição de velocidade, a aeronave começou a perder altura, só que não mergulhando e, sim, em atitude de voo, sem velocidade. Característica completa de estol. Os pilotos poderiam ter interagido com o avião e recuperado a velocidade, mas, para isso, precisariam ter entendido exatamente o que estava acontecendo, e parece que o entendimento foi incompleto, houve uma situação pouco treinada em simuladores.
Até então, o treinamento de recuperação de atitude em situações de pré-estol e de estol completo mirava mais o voo próximo do pouso, em menores altitudes, pelas variações de configuração, velocidade e potência. Assim, sempre houve treinamento para recuperação de estol no circuito de tráfego, na curva base e na aproximação final. Pouca ênfase era dada a situações em níveis de cruzeiro. O acidente com o Air France mudou essa percepção. Continuamos a treinar situações a baixa altura, agora ao lado de outras em níveis mais altos. Embora os conceitos sejam os mesmos, a reação do avião e a resposta dos motores em altitude é um pouco diferente, pelas características do ar, mais rarefeito.
Em simuladores, procuramos repetir o que houve com o Air France. Reproduzimos a perda das informações vindas dos tubos de pitot (congelados, no caso) e a tentativa de manutenção do voo sem a utilização das técnicas de recuperação de estol. O avião mantém o nariz alto, em atitude mais alta do que em voo nivelado, os motores com toda a potência, porém, com velocidade baixa. Há o estol das asas e a aeronave entra numa descida vertiginosa, sem mergulhar. Nessa situação, asas “estoladas”, os comandos se tornam ineficientes: o avião não está voando, os filetes de ar não estão fluindo ao redor dos aerofólios. O avião está caindo, bem rápido, “de barriga”.
Para sair de uma hipotética situação semelhante, precisamos realinhar os filetes de ar nas asas. Precisamos ganhar velocidade, baixar o nariz, mudando a atitude do avião. Por mais paradoxal que possa parecer, a técnica manda diminuir a potência dos motores. Isso faz com que o nariz da aeronave “fique pesado” e ela inicie um mergulho controlado para sair da atitude de estol. Saindo, com o realinhamento dos filetes de ar ao redor das asas, aplica-se potência novamente e volta-se a voar normalmente. Perde-se um pouco de altura, mas a recuperação da velocidade nesses casos é muito mais importante do que a altura.
Com o Air France não houve a recuperação da atitude. O avião foi mantido com o nariz alto todo o tempo, por interferência dos pilotos que tiveram pouco entendimento da situação. As características da aeronave, seu design, podem ter influenciado para que ocorresse dessa forma. Os comandos parecem pouco instintivos para um piloto, a ousadia na modernidade cobra seu preço.
Com o que temos até agora, não podemos afirmar ter sido o mesmo quadro com o AirAsia. Caso tenha havido a formação de cristais de gelo capazes de levar a perda de potência dos motores, as características do estol seriam as mesmas, a recuperação da mesma forma, sem haver, contudo, a aplicação de potência para prosseguir o voo. Admitindo-se essa situação, poderia ter havido uma descida controlada. São coisas distintas o estol e a perda de potência. Uma aeronave “estolada” cai enquanto uma aeronave com pouca ou nenhuma potência nos motores perde altura. É completamente diferente cair e perder altura. Cair é descontrolado, perder altura é controlado.
Pelas características dos destroços do A320 da Air Asia, ele caiu, não perdeu altura. Tampouco houve a ruptura da fuselagem em altitude. Tudo leva a crer que tenha caído e batido na água com violência, sem controle. A se aceitar esse quadro, teria caído “estolado”. Teria havido mais um estol em altitude.
Não é demais repetir que uma situação de estol é perfeitamente recuperável, a menos que seja muito próximo do chão. Lembremo-nos do Boeing 777 da Coréia que sofreu um acidente ao pousar em São Francisco, em 2014. Por desentendimento entre piloto e avião, houve uma situação de estol na aproximação final, com a aeronave batendo pouco antes da pista, acabando por acidentar-se já sobre o asfalto de pouso. Não houve tempo e espaço para a recuperação. O chão chegou antes que houvesse a reação do piloto/avião.
Algo semelhante aconteceu com um Boeing 737-800 da Turquia. Em aproximação final para pouso em Amsterdã, entrou numa atitude de estol próximo ao solo, vindo a pousar antes da pista, em dia claro de tempo bom. Nesse caso, o automatismo pregou uma peça nos pilotos que demoraram a entender e reagir. Novamente, o chão chegou antes. O rádio altímetro sofreu uma pane rápida, entendeu que o chão estava mais próximo da realidade e comandou os motores para potência de pouso, mínima. Acontece que o chão não estava assim tão próximo. Se os pilotos estivessem atentos, a correção teria sido simples: comandar a potência dos motores manualmente, coisa rotineira.
Há, finalmente, o estol de alta velocidade, menos conhecido. Ele ocorre quando um avião excede os parâmetros de velocidade para os quais foi desenhado, e partes da estrutura atingem ou ultrapassam a velocidade do som para aquele ambiente em que está voando. Com o ar passando sobre as asas em velocidade transônica ou supersônica, começa a formação de ondas de choque (o ar não é “avisado” da aproximação de um objeto, pela velocidade dele, e em vez de o avião penetrar na massa fluída de ar, ele tromba nela), há o descolamento dos filetes de ar e a modificação do centro de pressão, fazendo com que haja um movimento de baixar o nariz da aeronave. Os comandos perdem eficiência. A única maneira de sair de semelhante situação é baixar a velocidade reduzindo os motores ou usando o speedbrake, que faz com que a velocidade seja reduzida a números aceitáveis pela estrutura do avião.
Em ambos os casos de estol, de baixa e de alta velocidade, há alertas para os pilotos. Em alta velocidade, a aeronave vibra e uma “catraca” soa avisando da sobrevelocidade. Em baixa, existem avisos sonoros e visuais de perda de velocidade, o avião treme avisando que está em pré-estol (stickshaker). Todas as aeronaves têm algum tipo de alarme (mais de um), que chama a atenção quando a velocidade está diminuindo a ponto de colocar a manutenção do voo em risco. Todos os pilotos recebem informações e treinamento sobre as características de estol das aeronaves que operam e como sair das situações caso um dia ocorram. Desde os primeiros voos em aeroclubes, uma das manobras bastante treinadas é exatamente a recuperação de estol de baixa. Esse treinamento acompanha toda a vida do piloto, em qualquer tipo de avião. E é assim exatamente porque precisa da interferência do aviador para que haja a recuperação. Mas, para que ele interfira corretamente, é absolutamente necessário que haja o entendimento correto da situação e o conhecimento da forma de atuar nos comandos e motores.
Importante lembrar que quando se fala de velocidade do avião para efeito de estol, faz-se referência à velocidade com que o ar passa pelas partes da aeronave, e que interfere nos filetes de ar. É a velocidade de deslocamento daquele aerofólio. Assim, parte da asa pode já estar em velocidade trans ou supersônica, enquanto o avião ainda não está. Da mesma forma, a cauda da aeronave pode entrar em estol de alta antes que o avião atinja esse limite. É claro que o que leva as asas são os motores e a fuselagem, mas os filetes de ar têm velocidades diferentes em cada parte, pois isso depende do perfil daquele aerofólio. O ar pode passar mais rápido nas pontas das asas do que na raiz, no início delas. A forma, o tamanho e a curvatura de uma asa determinam a velocidade com que o ar passará por ela.
Igualmente em estóis de baixa, uma asa pode “estolar” antes da outra, depende do ângulo de ataque, do vento relativo. Ou “estolar” a cauda, sempre pelo descolamento dos filetes de ar passando. Apenas para divagar um pouco, um helicóptero também pode “estolar”. Mesmo em voo pairado, sem velocidade, as pás estão girando e recebendo o vento relativo. E as pás são exatamente as asas rotativas. Se houver o descolamento dos filetes de ar, o processo é semelhante.
Este não é um estudo aprofundado do tema. Fórmulas e gráficos demonstram à exaustão como reage um aerofólio submetido a baixas ou altas velocidades. Mas estudos assim são mais afeitos a engenheiros e construtores de aeronaves. Um piloto precisa, sem dúvida, conhecer o tema, saber como funciona, entender o porquê das coisas acontecerem da maneira como acontecem. E, muito importante, saber exatamente como reage o avião que ele voa. As aeronaves não são iguais. Os conceitos são, mas cada modelo de máquina guarda suas características, seus detalhes, seus modos de interação, sua técnica de voo.
Um avião ou helicóptero “estolado” cai, até que haja a recuperação. O piloto precisa, primeiro, evitar chegar ao ponto crítico. Para isso, precisa conhecer o equipamento, saber suas características, estar treinado nas manobras, manter o padrão de operação. Voando dessa forma, dificilmente chegará a uma situação de estol, de alta ou de baixa. Se, porventura, chegar, o piloto precisa estar treinado para saber reagir, recuperar a trajetória de voo, manter a normalidade.
Nenhum avião chega ao ponto da irreversibilidade de um acidente sem perfazer um caminho até esse ponto. O conhecimento e o treinamento do piloto precisam estar atualizados para que ele intervenha antes do ponto crítico, a partir do qual o acidente se torna uma realidade. Isso vale para problemas técnicos, de mau tempo, de gerenciamento de situações anormais e quaisquer outras. Um piloto que cumpre as regras de voo, mantém o padrão operacional e atualiza-se na operação do equipamento já está evitando a maior parte das situações que podem levar a aeronave a uma situação indesejada. O melhor e mais valioso equipamento de um avião ainda é um piloto bem treinado...
O comandante Miguel Angelo Rodeguero é especialista em segurança de voo e diretor de Segurança Operacional da APPA (Associação de Pilotos e Proprietários de Aeronaves)