A desilusão do mercado offshore

Petrobras cancela licitação para operação de helicópteros e inicia novo ciclo no segmento de aeronaves utilizadas no transporte aéreo para suas plataformas

Por Shailon Ian* Publicado em 09/03/2016, às 15h32 - Atualizado às 15h57

Frota caiu para 70 aeronaves em 2016

O mercado offshore sofreu um choque de realidade no final de 2015 com o cancelamento de uma licitação de operação de aeronaves pela Petrobras. As empresas que prestam serviço de transporte aéreo à petroleira brasileira viram as perspectivas se inverterem abruptamente enquanto o otimismo gerado pelo pré-sal diluía-se em água. Ao ultrapassar os 100 helicópteros em sua frota, os operadores projetavam um crescimento agressivo, que culminaria em 200 aeronaves no país até 2020. Hoje com 70 aeronaves em operação, o setor vive um clima de desilusão. A condução de passageiros por via aérea para plataformas de petróleo é a maior atividade de transporte civil utilizando helicópteros no planeta e a operação da Petrobras tornou-se a maior do mundo dedicada a uma única empresa, embarcando mais de 1 milhão de passageiros (técnicos e executivos da empresa e suas contratadas) por ano. Um processo que teve início há pelo menos quatro décadas. Embora a primeira descoberta de petróleo em alto-mar tenha acontecido em 1968, no litoral de Sergipe, a exploração offshore só decolou no Brasil em 1974, quando a Bacia de Campos, nos estados do Espirito Santo e do Rio de Janeiro, mostrou seu potencial. O avanço da exploração e da produção trouxe o desenvolvimento de uma atividade fundamental no suporte às plataformas: o transporte de pessoal por via aérea utilizando helicópteros.


Do Vietnã para Macaé

 

 

Alguns pilotos que participaram das operações com helicópteros no seu início, em Macaé (RJ), viviam um clima de desbravadores na época. A cidade estava em pleno frenesi causado pela descoberta de petróleo no mar à sua frente, mas ainda era pouco mais que uma vila, com quase nenhuma infraestrutura instalada. O “aeroporto” de então era um projeto, com pista de terra e sem estrutura adequada para atender às pessoas (tripulantes, mecânicos e passageiros) e, principalmente, aos helicópteros. Além disso, encontrar mão de obra capacitada era um problema, o país não era o segundo maior mercado mundial de helicópteros. A solução foi buscar pilotos das forças armadas – no Brasil e em Portugal, que acabava de sair de uma guerra com Angola e possuía vários pilotos experientes dispostos a voar além-mar.

 

As aeronaves, notadamente o Hughes, o Bell e os Sikorsky, muitos deles egressos da Guerra do Vietnã, tinham pouco ou nenhum apoio. Naquele tempo, as máquinas ainda operavam sem GPS, piloto automático ou qualquer outro auxílio.


Sikorsky S76-A

Com a certeza de que o desenvolvimento da exploração de petróleo offshore seria fundamental para a economia do país, os investimentos no setor aumentaram significativamente. Se o terminal de passageiros do Aeroporto de Macaé até hoje deixa a desejar, a pista asfaltada, os hangares e o pátio voltados para a aviação de helicópteros denunciam a vocação do aeródromo para o atendimento da operação offshore.

Na década de 1980, a indústria viu a chegada daquele que seria por vários anos a espinha dorsal da logística de transporte de passageiros offshore, o Sikorsky S76-A. Desenvolvido e produzido nos Estados Unidos pela Sikorsky Helicopters, hoje uma empresa do grupo Lockheed Martin após ser adquirida junto à United Technologies na maior transação no mercado de defesa dos últimos 10 anos, representou uma evolução na indústria e reinou praticamente absoluto na região até a chegada dos AgustaWestland AW139, em 2007.

Com capacidade para transportar até 12 passageiros, em sua versão inicial o S76-A contava com dois motores Allison 250 C-30 e já trazia os primeiros pilotos automáticos instalados – que, na verdade, eram auxílios ao voo mais do que realmente um piloto automático como o que temos na aviação comercial de asa fixa. Com uma frota de aproximadamente 20 helicópteros operados por quatro empresas em contratos de até 36 meses, a aviação de helicópteros da Petrobras começava a se destacar no cenário mundial.


Contratos de longo prazo

No final da década de 1980 e durante a década de 1990, a despeito do encerramento das atividades de algumas empresas importantes, houve um crescimento substancial da operação offshore. O número de aeronaves não parava de aumentar, principalmente em função do foco em modelos de médio porte em detrimento dos de grande porte, como acontecia, por exemplo, no Mar do Norte, na Europa.

 

O crescimento e o amadurecimento da indústria de transporte offshore no Brasil fizeram com que o país definitivamente entrasse no mapa dos fabricantes, que passaram a incluir o país em seus road shows e programas de visitas. Diante da idade média elevada da frota, o lançamento de um programa de renovação seria questão de tempo. Paralelamente, depois de 1994, os contratos de longo prazo necessários para viabilizar os investimentos em novos helicópteros já eram possíveis, graças ao controle da inflação.

No final da década de 1990, a esperada renovação da frota se iniciou com alongamento dos prazos dos contratos para até 5 anos e possibilidade de se usar os recebíveis como garantia para o pagamento do financiamento ou do leasing dos novos helicópteros. Não tardou para que os primeiros S76C+ com modernos motores Turbomeca e aviônicos mais sofisticados desembarcassem no Brasil. Também chegaram os primeiros Super Puma L2, aeronaves de grande porte configuradas para o para transporte de até 19 passageiros, que introduziram no Brasil o conceito do HUMS (Health Usage Monitoring System), um sistema de monitoramento da situação do helicóptero que acompanha os níveis de vibração de componentes críticos e emite alertas, permitindo a ação preventiva da manutenção e aumentando significativamente os níveis de segurança de voo. Hoje, sistemas equivalentes estão instalados em todos os helicópteros que prestam serviço para a Petrobras.

 

Muitos acidentes

O volume de passageiros transportados crescia constantemente, acarretando aumento das horas voadas por cada helicóptero. Aliada à idade avançada da frota e à aplicação ainda inicial de conceitos modernos de segurança operacional, essa situação acabou levando a vários acidentes nos primeiros anos do novo século, obrigando a Petrobras a tomar providências. A mais relevante delas foi instituir o PEOTRAM (Programa de Excelência no Transporte Aéreo e Marítimo), mobilizando operadores a adotar as melhores práticas operacionais existentes no mundo. Com o tempo, o programa tornou-se obrigatório.

Dentre as diversas medidas adotadas, destacaram-se o programa de renovação da frota (que deslanchou, com a substituição de toda a frota anterior, defasada, por novas máquinas com foco maior na segurança do voo) e a nova abordagem ao sistema de segurança operacional (que passou a focar nos processos adotados pelas empresas de forma a garantir uma operação com níveis de segurança aceitáveis). Os resultados do programa são inquestionáveis, com a redução do índice de acidentes por 100.000 horas voadas para níveis de excelência, além da adoção por parte das empresas de processos e procedimentos robustos de operação e manutenção da frota. O PEOTRAM ainda está em vigor e, a cada ano, novos requisitos são implantados com o objetivo de aumentar os níveis de segurança operacional no transporte offshore.

 

Era de ouro

Durante uma década, o que se viu foi a troca gradativa de aeronaves mais antigas por novos helicópteros, que incorporavam o que há de mais moderno em apoio à tripulação, navegação e monitoramento de dados. A frota rapidamente passou dos 70 helicópteros, com aumento significativo das aeronaves de grande porte, como os novos EC225 da Airbus Helicopters e S92 da Sikorsky. O entusiasmo era grande e, no início dos anos 2010, qualquer profissional da indústria diria que o Brasil era lugar para se estar se assunto fosse o transporte de passageiros com helicópteros.

Ainda que nos 10 anos anteriores o crescimento tivesse sido significativo, e a frota dedicada à Petrobras já ultrapassasse as 100 aeronaves, as perspectivas apontavam para um crescimento ainda mais vigoroso por conta dos investimentos no pré-sal. Os tais 200 helicópteros até 2020. As empresas de leasing de helicópteros, uma novidade no setor, estavam ansiosas e preparadas para atender a essa nova demanda, com ordens já colocadas junto aos fabricantes, enquanto os operadores planejavam como atender a esse crescimento e como lidar com o desafio de formar pilotos, mecânicos e atendentes. Uma nova rodada de renovação de contratos deveria acontecer entre 2012 e 2013 e as apostas eram altas no setor.

 

Choque de realidade

O setor de transporte offshore sempre foi considerado um oásis no mercado brasileiro de aviação civil, principalmente depois de 1994. A forma como os contratos eram estruturados ofereciam aos operadores uma proteção “natural” contra as variações nos preços dos combustíveis (fornecidos pela Petrobras) e variação cambial (parte do contrato acompanha a variação da moeda estrangeira) de forma que o setor passou relativamente bem pelas crises que tanto afetaram as companhias aéreas regulares.

Adicionalmente, no passado recente, não houve nenhum ciclo de renovação dos contratos em períodos de crise. Até 2012-2013, as renovações se deram em momentos de otimismo e projeções agressivas de crescimento da exploração e produção offshore. Os primeiros sinais de que o setor enfrentaria momentos difíceis veio na rodada de renovação de contratos de 2013-2014. Já pressionada pela política econômica adotada no Brasil, a empresa reviu alguns planos e não renovou alguns contratos.

Com o desenvolvimento do pré-sal ainda em pauta, a troca do perfil da frota, que contava com 70% de aeronaves de médio porte (S76C++ e AW139) e 30% de aeronaves de grande porte (EC225 e S92), parecia estar em curso. O mercado esperava que as novas contratações se concentrariam em aeronaves de grande porte, aptas a transportar o pessoal até as distantes plataformas do pré-sal, de modo que a composição da frota chegasse a um equilíbrio entre aeronaves de médio porte e de grande porte. Assim, a licitação para aeronaves de grande porte que aconteceu no final de 2014 só veio a confirmar as expectativas do mercado. Os participantes foram bastante agressivos em sua proposta, tentando garantir os contratos para seus helicópteros, muitos deles já contratados junto às empresas de leasing e os fabricantes.

Contudo, depois de mais de 10 meses de processo licitatório, em dezembro de 2015, a Petrobras emitiu um comunicado oficializando o cancelamento da licitação e, consequentemente, da contratação de novos helicópteros. Adicionalmente, as empresas que tinham contratos para ser renovados encontraram um ambiente muito mais duro de negociações, e grande parte dos contratos não foram renovados.

 

 

Tempos difíceis

A redução da frota, hoje em torno de 70 aeronaves, e a redução no número de horas voadas por aeronave, aliadas à não renovação de contratos existentes e à suspensão das contratações, acaba por trazer a certeza para a indústria de que tempos difíceis estão por vir. A redução nos quadros das empresas será obrigatória e demissões são esperadas no setor. Além disso, qualquer retomada demandará tempo, pois aeronaves que estavam reservadas para a operação brasileira invariavelmente serão alocadas pelas empresas de leasing em outras áreas, como a Ásia e a África.

Empresários que já haviam assinados compromissos baseados nas perspectivas de crescimento tiveram de rever seus planos, adequando-se a um período de vacas magras, com redução de caixa disponível. Aqueles que conseguirem se adaptar rapidamente se manterão vivos para uma retomada futura, caso ela aconteça, mas não há dúvidas de que algumas empresas devem ficar pelo caminho. Os pilotos e mecânicos, atraídos para a atividade offshore em função dos salários comumente acima da média da indústria, agora veem-se desempregados, alguns já há vários meses, fato impensável poucos anos atrás.

De acordo com interlocutores da indústria, os preços do petróleo na faixa atual e a situação complexa da Petrobras em termos de dívida e caixa estão fazendo com que a empresa alongue seus planos de investimentos e crescimento da produção. Com menos investimento em exploração e produção, a necessidade de transporte diminui, e qualquer retomada demandará tempo, talvez três anos ou mais, pois, antes de se chegar aos helicópteros, outros setores, como o de sondas de perfuração, precisam mostrar alguma recuperação. Assim, embora não tenham certeza do tamanho da dificuldade que está em andamento, a indústria sabe que o aperto está apenas começando e que deve durar por alguns anos ainda. O alento é que, apesar de os investimentos estarem aquém do previsto incialmente, a Petrobras confirmou, no início de 2016, um aporte de US$ 80 bilhões para a divisão de exploração e produção em seu Plano de Negócios e Gestão 2015-2019. O valor representa 81% do total de investimentos e demonstra que a companhia manterá essa divisão como prioridade, com ênfase no pré-sal.

*Shailon Ian é engenheiro aeronáutico e sócio-presidente da Vinci Aeronáutica