Reviravolta no julgamento do acidente aéreo do voo 3054 com Airbus da TAM em Congonhas pode resultar na prisão de executivos. Quais as lições desse debate?
Por Daniel Calazans (Professor Kalazans) Publicado em 18/05/2014, às 00h00 - Atualizado às 17h56
O Ministério Público Federal fez uma consideração à Justiça brasileira que promete mudar a concepção da comunidade aérea brasileira. O imbróglio está no fato de o MPF ter acusado a título de “dolo” os responsáveis pelo acidente aéreo envolvendo um avião da TAM, que resultou na morte de 199 pessoas. Essa consideração, se aceita pela Justiça, pode resultar em pena de até 24 anos de prisão para os acusados.
O episódio está ligado ao acidente aéreo ocorrido no dia 17 de julho de 2007 por volta das 19h00 no aeroporto de Congonhas, em São Paulo (SP), quando um Airbus A320, que havia pousado na pista principal, cabeceira 35L (35 esquerda), percorreu toda a sua extensão na velocidade aproximada de 170 km/h, derivou à esquerda, ultrapassou o canteiro e, após ter sobrevoado a Avenida Washington Luís, chocou-se contra um prédio, seguindo-se incêndio de grandes proporções e destruição completa tanto da aeronave quanto da edificação. O desastre ocorreu 18 dias após a inauguração parcial da obra de engenharia destinada ao recapeamento da pista principal do aeroporto de Congonhas.
No dia 11 de agosto de 2011, o MPF ofereceu denúncia contra três profissionais envolvidos no episódio, baseando-se no artigo 261 do Código Penal Brasileiro, atentado contra a segurança de transporte aéreo. Essa primeira acusação fundamentou-se em conduta culposa, que resultaria em uma pena de no máximo quatro anos, não prevendo prisão a nenhum dos acusados.
Na exposição dos fatos e indicação do ilícito penal, o MPF imputou aos denunciados o crime acima, entendendo que expuseram a perigo o voo 3054, pois, mesmo tendo conhecimento das péssimas condições de atrito e frenagem da pista principal do aeroporto de Congonhas, em especial nos dias de chuva, permitiram que a aeronave, a despeito de falha mecânica em um dos motores, viesse a pousar em pista escorregadia. Foram acusados executivos das áreas de Segurança de Voo e Operações da companhia aérea e também da Anac.
Dois pontos relevantes nesse processo penal merecem atenção: a criminalização em caso de acidentes e a responsabilização de profissionais que não estão na linha de frente, como diretores, gerentes e responsáveis pela instrução. Contudo, durante o processo penal, tendo ouvido testemunhas e acusados e avaliado todas as provas, o MPF entendeu que a melhor imputação seria a dolosa. De acordo com essa segunda denúncia, o diretor de Segurança de Voo e a diretora da ANAC, com suas condutas, assumiram o risco de produzir o resultado. Uma condenação nesse sentido pode resultar em uma pena superior a 20 anos, eliminando a possibilidade de penas alternativas, levando os acusados à prisão.
A comunidade aeronáutica insurgiu-se contra essa imputação criminosa, alegando que não seria possível, em hipótese alguma, que os acusados quisessem o acidente. Mas nessa interpretação reside o equívoco dos profissionais da atividade aérea, pois, juridicamente analisando, é plenamente possível conduta dolosa em caso de acidentes aéreos.
Em situações como essa, evidentemente, não cabe o “dolo direto”, que ocorre quando o agente quer produzir o acidente, mas, sim, o “dolo indireto” (ou “dolo eventual”), que é aquele que ocorre quando o agente, não querendo produzir o resultado, age de modo a assumir a produção do resultado. O que vai diferenciar o “dolo direto” do “dolo eventual” são as circunstâncias em que se deu o acidente.
Em se tratando da atividade aérea, o agente não quer o acidente, mas, prevendo que o acidente possa ocorrer, assume, assim mesmo, o risco de causá-lo. Ocorre o “dolo eventual”, portanto, quando o agente tem como possível a realização de um crime, seriamente, e se conforma com isso. Eis alguns exemplos de conduta dolosa na atividade aérea:
*Tripulação que opta por voar ciente de que a aeronave contém equipamentos indispensáveis para a segurança do voo inoperantes ou danificados. Ausência de equipamentos que, segundo o manual da aeronave, impede o voo (itens “no go”).
*Tripulação que resolve decolar em condições meteorológicas adversas sem estar devidamente habilitada para o voo por instrumentos, ou sem que a aeronave esteja homologada para esse tipo de missão.
*Piloto que resolve prosseguir com as condições meteorológicas abaixo dos mínimos regulamentares. Manobra vulgarmente conhecida por “operação por conta e risco”. Concorre com o dolo eventual o controlador que autoriza “operação por conta e risco”.
*Piloto que resolve decolar ciente de que a aeronave está acima do peso máximo de decolagem.
De acordo com a denúncia, o diretor de Segurança de Voo e a diretora da ANAC assumiram o risco de produzir o acidente
Embora a comunidade aeronáutica repudie o “dolo eventual”, a prática de conduta dolosa na atividade aérea é muito mais comum do que se imagina, e os exemplos acima representam uma pequena demonstração de muitas outras. Portanto, pilotos, controladores e demais membros da atividade aérea que não revisarem conceitos e procedimentos – no sentido de seguir estritamente normas de segurança de voo – receberão tratamento diferente pela comunidade jurídica, já que muitas condutas inadequadas devem deixar de ser desprezadas.
Não cabe aqui se posicionar contra ou a favor da conduta dolosa no caso do voo 3054, mas, sim, reconhecer que extenuantes debates entre defesa e acusação serão necessários para esclarecer se os agentes foram apenas negligentes ou se, com suas condutas, assumiram o risco de produzir o acidente.
Há dúvidas se o juiz aceitará a denúncia a título de dolo e se haverá condenação nesse sentido. Porém, acusação e defesa tornam-se extremamente desgastantes, estressantes e onerosas para os envolvidos. O desafio atual passa pela incorporação de uma nova mentalidade, que possa não apenas evitar a criminalização em caso de acidentes aéreos, mas, além disso, evitar condutas que se amoldam perfeitamente aos crimes estipulados no Código Penal.