As lições das investigações do acidente sem sobreviventes com o Airbus A330 da Air France que caiu no mar em 2009 quando voava do Rio de Janeiro para Paris
| Fabio Laranjeira* | Fotos | Divulgação Publicado em 06/08/2012, às 13h30 - Atualizado em 27/07/2013, às 18h45
Painel iluminado do Airbus A330 |
A agência francesa de investigação de acidentes aeronáuticos publicou em julho último seu terceiro e conclusivo relatório sobre o acidente com o Airbus A330 da Air France que executava o voo AF447 do Rio de Janeiro a Paris na madrugada de 1º de junho de 2009, matando todos os 228 ocupantes a bordo. O parecer final do BEA (Bureau d'Enquetes et d'Analyses) gerou controvérsias. De um lado, apontamentos de responsabilidade pelo acidente para os pilotos. De outro, acusações contra o fabricante da aeronave e a companhia aérea. Este artigo não tem a intenção de apontar culpados e responsáveis pelo desastre, mas, sim, de analisar os fatos que desencadearam um dos maiores acidentes da história recente da aviação comercial.
De acordo com o relatório final, durante o voo de cruzeiro no FL350 (35.000 pés), já cruzando o Oceano Atlântico, a tripulação do AF447 voou através de uma formação pesada, o que provocou o acúmulo de cristais de gelo nos tubos de pitot. Às 2h09min46s é possível ouvir pelo microfone instalado na cabine o som típico de cristais de gelo chocando-se contra o para-brisa da aeronave. Menos de 30 segundos depois, o piloto automático desconecta-se sozinho. Apesar dos diversos alertas de estol, incluindo um que durou continuadamente 54 segundos, nenhum dos pilotos confirmou ciência do alarme ou a presença de buffet de estol.
A partir desse ponto, aponta o relatório, os pilotos tiveram dificuldade de identificar, interpretar e reagir de acordo com a necessidade da situação. A perda das informações de velocidade associada à presença de turbulência e à falta completa de referência visual externa pegou a tripulação do AF447 completamente de surpresa. As complexidades aparentes de se voar manualmente em tal situação, combinadas às características únicas de manobralidade de uma aeronave em elevada altitude, foram fatores adicionais de dificuldade que a tripulação teve de encarar, levando a aeronave a atitudes não condizentes com o voo, desestabilizando-a e provocando o estol seguido de queda.
O relatório aponta como fatores contribuintes a falta de treinamento específico de voo a grandes altitudes, a inabilidade momentânea da tripulação em identificar e reagir a uma situação de estol (perda de sustentação), assim como uma hipotética confusão entre a situação real e uma possível situação de overspeed, o que poderia ter levado a tripulação a reagir de forma errônea. O relatório aponta, ainda, dificuldades em se identificar e entender as implicações do voo quando operado em "alternate law" sem a "angle of atack protection", uma das características de voo do Airbus, que, se estão ausentes, fazem a pilotagem ser revertida ao modo básico.
É fundamental entender que a asa de um avião pode estolar em qualquer velocidade e a qualquer altitude. Além disso, a altitude não tem relação alguma com o estol aerodinâmico. Uma aeronave pode ter sua asa estolada mesmo durante uma descida. Isso acontece quando o AoA (ângulo de ataque) é maior do que o ângulo de estol.
Os exercícios de approach to stall são comuns no simulador. A manobra de recuperação de estol é completamente diferente da approach to stall, que geralmente tem como foco a recuperação de uma situação que pode vir a ser um estol completo - utilizando a potência dos motores. No approach to stall, o foco é na pouca perda de altitude.
É impossível recuperar-se de uma condição de estol sem reduzir o ângulo de ataque da aeronave, e isso certamente levará a uma perda de altitude, independentemente de quão perto a aeronave esteja do solo. Apesar de o vetor de potência ser um fator importante na recuperação do estol, ele serve mais como complemento do que essência para sair dessa condição, uma vez que potência, nesses casos, não é o controle primário de recuperação.
BEA FAZ NOVAS RECOMENDAÇÕES APÓS RELATÓRIO FINAL, COMO DAR MAIS ÊNFASE NO CONHECIMENTO DOS SISTEMAS DA AERONAVE E NO TREINAMENTO DE VOO MANUAL EM GRANDES ALTITUDES NO SIMULADOR
Quando voamos próximo do ângulo de ataque de estol, o arrasto é muito alto e a potência disponível é marginal. E mesmo que os motores estejam em idle, a aceleração deles poderá (e será) muito lenta, fazendo com que a recuperação seja mais lenta. Em grandes altitudes, com a potência máxima disponível limitada, voar nessas condições torna-se ainda mais marginal.
Uma vez que o piloto perceba que a aeronave encontra-se em estol aerodinâmico, é necessário que ele tome decisões e atitudes corretivas imediatas para a recuperação do voo normal. Porém, às vezes, as reações podem ser mais lentas, em razão destes motivos, em geral:
Falta de consciência situacional
e confusão (dificuldade
em entender o que está
acontecendo)
Ansiedade
Treinamento prévio com ênfase na prevenção de perda
de altitude somente a poucas
centenas de pés
Experiência inadequada para
o voo manual em grandes
altitudes
Preocupação com a segurança
e conforto dos passageiros e
tripulantes comerciais
Durante o treinamento de recuperação de estol, os pilotos devem ter em mente que a magnitude de inputs nos comandos de voo pode variar de aeronave para aeronave e, também, que a manobra exigirá certo tempo para sua recuperação, além de uma grande variação de altitude, passando de milhares de pés, enquanto a aeronave acelera. Importante salientar que não havia - na época do acidente - checklist ou procedimento específico dizendo quando iniciar a manobra de recuperação ou quanto de pressão o piloto deverá manter nos comandos de voo, por isso a necessidade urgente de se treinar constantemente tal manobra em simulador. Além disso, os pilotos devem ter conhecimento que uma recuperação agressiva de um estol, seguida por uma tentativa de se retomar a altitude perdida durante a recuperação do voo estolado, poderá levar a aeronave a um estol secundário. Por outro lado, o piloto deve atentar para a necessidade de impedir que a aeronave acelere de modo a entrar na área de high speed buffet, podendo ultrapassar seus limites estruturais e causar problemas ainda maiores - e de impossível resolução.
Quando, nessa condição, os elevators são os controles principais usados para sair do estol, se não houver redução do ângulo de ataque, a asa (e o avião) permanecerá estolada até o impacto com o solo, e isso independe da altitude. A recuperação de estol exige que, deliberadamente e de forma suave, reduza-se o ângulo de ataque. O piloto deve ter em mente que a potência não é um recurso a ser utilizado no início da recuperação, uma vez que, em aeronaves com motores sob a asa - como no caso do A330 -, quando se aplica potência, há uma tendência natural de a aeronave subir o nariz, o que dificulta, ou até mesmo impossibilita, a recuperação. É primordial que se reduza o ângulo de ataque, e essa redução exigirá perda de altitude. O piloto terá de trocar a recuperação por altitude - o que vai contra o princípio que é dado no simulador (perda mínima de altitude para recuperar-se de uma condição pré-estol). Ou seja, temos aqui um fator humano que influenciou no que ocorreu a bordo do AF447. A chamada "experiência prévia" e reação treinada. Afinal, o piloto treinou aquilo no simulador, e na hora em que o tripulante é pego de surpresa, geralmente reverte para um "modo automático", baseado no seu conhecimento e treinos prévios.
#Q#Com a publicação dos relatórios preliminares, algumas mudanças ocorreram de forma imediata, como a troca de todas as sondas Th ales por sondas Goodrich e modificação da padronização da troca de comando para descanso do comandante. Com relação ao treinamento das tripulações, ainda em 2009, foi adicionada uma sessão de simulador para treinamento de voo com indicação de velocidade sem veracidade (unreliable airspeed), revisão das manobras de emergências, tanto em cruzeiro como na decolagem, treinamento de voo manual e em alternate law em grandes altitudes, entre outros.
O local onde ocorreu a maior tragédia da aviação brasileira, ao lado do Aeroporto de Congonhas, em São Paulo (SP), tornou-se um memorial em homenagem às 199 vítimas que morreram em 17 de julho de 2007. Lá funcionavam a TAM Express (divisão de encomendas da empresa) e um posto de combustíveis. E na noite daquela terça-feira, sob forte chuva, o Airbus A320 da TAM, prefixo PR-MBK, que cumpria o voo JJ3054, na rota entre Porto Alegre e São Paulo, não conseguiu parar na pista, sobrevoou uma avenida e se chocou contra o prédio da própria empresa. Cinco anos depois, o local, batizado "Memorial 17 de Julho", foi totalmente reformado, ganhou bancos, luzes, um espelho d'água e brinquedos para crianças. No chão, 199 lâmpadas LED relembram os mortos, bem como seus nomes, gravados ao redor do espelho d'água, que abriga, ainda, uma amoreira, que resistiu à destruição no dia do acidente e é considerada o principal símbolo do memorial. Texto e foto Rodrigo Cozzato |
Após a publicação do relatório conclusivo do acidente do AF447, a agência francesa de investigação fez uma nova lista de recomendações. Adicionou, na área de treinamento, mais ênfase no conhecimento dos sistemas da aeronave, principalmente nas suas mudanças durante voos com características não usuais ou em modos degradados de proteção de voo; e treinamento de voo manual em grandes altitudes no simulador, aumentando o grau de fidelidade nas situações de anormalidades no simulador.
Há uma grande discussão de quem são os responsáveis pelo acidente com o voo AF447. O anexo 13 da Icao não permite que um relatório final de acidente aeronáutico aponte culpados e/ou responsáveis de forma nominal ou direta. Sempre deve salientar os fatores contribuintes, sejam eles treinamento ineficaz, falta de destreza na pilotagem, problemas na fabricação ou projeto da aeronave ou, até mesmo, o sistema como um todo.
No caso do AF447, os pilotos reagiram de forma condizente com o treinamento que receberam, e o fizeram com base nas informações que tinham no momento. Isso aliado a uma situação de voo sem referências visuais e em ar turbulento. Compreender os fatores que vão além das ações pontuais de cabine é uma forma de dar amplitude ao aprendizado que um acidente como esse pode deixar para a segurança de voo.
* Fabio Laranjeira é piloto de linha aérea e agente de segurança de voo. Formado em Ciências Aeronáuticas pela PuC-RS, tem habilitação de Boeing 727 e Airbus A32F