O Ministério Público Federal move ação civil pública propondo que a Anac mude os critérios para os Inspac. O que deve acontecer se a Justiça acatar o pedido?
Por Daniel Calazans (Professor KALAZANS)*, especial para AERO Magazine Publicado em 26/02/2014, às 00h00
Tudo teve início quando um piloto checador que só conhecia o sistema da Boeing foi convocado para checar pilotos que iriam comandar voos de Airbus. Alegando perigo de acidentes aéreos, o checador recusou o trabalho. Esse fato resultou em uma Ação Pública em que o Ministério Público Federal (MPF) pede à Justiça Federal que os critérios para os pilotos checadores sejam mudados. Caso a Justiça Federal acate os pedidos do MPF, teremos desfechos jurídicos interessantíssimos na atividade aérea. Segundo o procurador federal, os avaliadores destacados para aplicar os exames nem sempre possuem o domínio teórico e prático do tipo de avião a ser pilotado.
Ao negar-se a realizar o check, o piloto agiu de acordo com o bom Direito, pois questões como essas têm se destacado do cenário jurídico-aeronáutico internacional, ensejando responsabilidade jurídica para o checador que contribui com a insegurança do voo ao aprovar profissional inapto para a função. Se o checador não é habilitado para o tipo específico da aeronave, não tem conhecimento técnico suficiente para assegurar que o piloto que está sendo checado está atuando de modo a garantir a segurança. Para isentar-se de responsabilidades jurídicas, o checador deverá ser tão qualificado quanto o examinado submetido à avaliação, sendo que, para as inspeções em voo, o checador deve saber operar a mesma aeronave. Ao propor a ação civil pública, o procurador citou que a falta de habilitação específica dos examinadores no particular tipo de aeronave – em grau, no mínimo, semelhante ao examinado –, fragiliza a segurança aérea, expondo a risco o direito à vida e a integridade física de profissionais da aviação, usuários desse serviço e sociedade em geral.
Embora seja prática recorrente e admitida pela Anac, devido à falta de checadores específicos, o documento nº 8335 da Organização da Aviação Civil Internacional, manual de procedimentos para inspeções e certificações de pilotos e aviões, informa que o inspetor deve ter pelo menos a mesma qualificação do piloto que será submetido à avaliação. O texto aponta, ainda, que, para inspeções em voo, o fiscal deve saber operar a mesma aeronave ou um avião com características operacionais semelhantes.
Além do documento nº 8335, o procurador federal encontrou dois documentos elaborados em 2005 e emitidos pelo Cenipa que trazem orientações que contradizem a prática da agência. O órgão central do Sistema de Investigação e Prevenção de Acidentes Aeronáuticos (Sipaer) expediu a recomendação de segurança de voo RSV (A) 006/2005-SERAC 2, determinando a proibição dos voos de avaliação de perícia por Inspac que não seja habilitado no equipamento a ser checado e, também, não atualizado (ou seja, não tenha participado de cursos de reciclagem). Igualmente, o Cenipa expediu a recomendação RSV (A) 007/2005 SERAC 2, estipulando que a Anac estabelecesse um programa de capacitação dos Inspac nas diversas aeronaves para as quais não existia pessoal qualificado para a realização segura do voo de perícia.
Com essas informações colhidas no inquérito civil, o procurador federal concluiu que a exigência de inquestionável domínio técnico dos avaliadores sobre o tipo de avião a ser pilotado pelos avaliados está presente tanto nas normas internacionais de aviação quanto nas recomendações de segurança expedidas pelo órgão que zela pela segurança dos voos no Brasil. Nas palavras do procurador, são regras necessárias para evitar perdas de vidas e de material decorrentes de acidentes aeronáuticos.
Embora seja prática recorrente, a Oaci informa que o inspetor deve ter pelo menos a mesma qualificação do piloto em avaliação
Ao desobedecer às normas internacionais e deixar de cumprir as recomendações, o procurador entendeu que a Anac concorre para a exposição a riscos a vidas, bens materiais dos envolvidos e usuários dos serviços, o que denominou “omissão ilícita”.
Dentre os pedidos realizados para a justiça federal destacaremos dois que, se aceitos, representarão desfechos interessantes para a comunidade aeronáutica:
“...ordene à ré o cumprimento da RSV (A) 006/2005-SERAC 2 – proibindo os voos de avaliação de perícia por INSPACs e examinadores credenciados que não sejam habilitados no equipamento a ser checado e, também, não atualizados (ou seja, não tenham participado de cursos de reciclagem)...”.
“...ordene à ré o cumprimento da RSV (A) 007/2005 SERAC 2 – fixando programa de capacitação dos INSPACs e examinadores credenciados nas diversas aeronaves em que não exista pessoal qualificado para a realização segura do voo de perícia...”.
Não vamos nos posicionar a favor ou contra a peça do MPF nem à decisão judicial que virá, mas analisaremos os possíveis precedentes jurídicos que afetarão consideravelmente a atividade aérea.
Caso a justiça federal acate o pedido e ordene o cumprimento das recomendações, estas passam a ter uma força mandatória e não mais de recomendação. Na peça judicial, o procurador afirma que “as recomendações de segurança de voo (RSV) positivadas pelo CENIPA devem, cogentemente, ser observadas e cumpridas pela ANAC, sob a pena de responsabilização institucional dessa agência e dos seus dirigentes”. Assim, as recomendações dirigidas a pessoas jurídicas e pessoas físicas e não cumpridas passam a ser subentendidas como “omissão ilícita”. Isso traz considerável responsabilidade jurídica aos profissionais da atividade aérea. E não estranharemos quando um jurista invocar essa nova concepção para responsabilizar os profissionais que não acatarem tais recomendações (mandamentos), podendo haver, até, um enquadramento do crime de exposição de aeronave a perigo do artigo 261 do Código Penal Brasileiro, pelo simples descumprimento dessas recomendações ou obrigações, dependendo do desfecho jurídico dessa ação civil pública. Aquilo que era “recomendação” passa a ser “mandatório”. Juridicamente falando, cogente é o que deve ser integralmente cumprido sem alterações ou exclusões por vontade das partes envolvidas, tornando o seu cumprimento obrigatório de maneira coercitiva.
Enfatizamos que as pessoas físicas e jurídicas destinatários das recomendações deverão dar uma valor maior a estas, pois, em caso de omissão, elas podem ser juridicamente responsabilizadas pela não aplicação do que o MPF denomina “omissão ilícita”.
A proibição dos voos de avaliação por InSpac credenciado e que não seja habilitado no equipamento gera dúvidas aos pilotos que tiverem as carteiras vencidas
Por outro lado, sendo aceito o pedido de “proibição” dos voos de avaliação de perícia por Inspac e examinadores credenciados que não sejam habilitados no equipamento a ser checado e, também, não atualizados, surgem dúvidas a respeito dos pilotos que tiverem suas carteiras vencidas: quanto tempo levará para que a agência programe cursos de capacitação dos Inspac e credencie os novos checadores? Os pilotos de linha aérea e da aviação geral sujeitos aos exames de proficiências terão os prazos de validade prorrogados? Em caso positivo, por quanto tempo?
O procurador federal enfatiza que o objetivo precípuo da ação é justamente a manutenção da segurança para a navegação aérea, pois, em sua opinião, essa conduta fragiliza a segurança aeronáutica, expondo a risco uma integridade de direitos fundamentais, principalmente a vida de profissionais da aviação civil, usuários do serviço aéreo e sociedade em geral. Por razões como essa, cada vez mais, as questões da segurança de voo tendem a ser estabelecidas mais por profissionais da comunidade jurídica do que por profissionais da comunidade aeronáutica, com base, evidentemente, no conhecimento produzido pelos que vivem a rotina da aviação e da regulamentação aeronáutica.
* Daniel Calazans (Professor Kalazans) é piloto comercial, controlador de tráfego aéreo, autor de livros sobre Direito Aeronáutico e Acidentes Aéreos, investigador aeronáutico e especialista em Direito Aeronáutico.