Aeroportos internacionais evocam os múltiplos temas que dão vida à nossa civilização
Sergio Vilas-Boas Ilustração Jackson Oliveira Publicado em 13/09/2011, às 08h20 - Atualizado em 27/07/2013, às 18h45
Quem pilota aviões, voa. Quem não pilota, imagina. Enquadro-me na segunda categoria. Meu fascínio por aeroportos é parte de um pacote de prazeres aéreos. O filósofo suíço Alain de Botton, autor de Uma Semana no Aeroporto (Rocco), compartilha uma adoração idêntica. Em um mundo repleto de caos e irregularidades, os aeroportos são um intrigante refúgio de complexidade, lógica e, às vezes, elegância. O emaranhado de pulsações de um grande terminal remete à multiplicidade de temas que hoje permeiam a nossa civilização: globalização, arte, tecnologia, família etc.
Entre 1984 e 1986, trabalhei em Confins (MG). O lugar parecia o fim do mundo e o terminal de passageiros, um gigantesco computador em modo de espera. Tudo possuía um aroma de coisa encaixotada que desmobilizava nosso cronograma de verificações eletroeletrônicas. Confins era o antiaeroporto.
Não havia ali nem sombra do romantismo de viajar, nem sinal da interconectividade global. Hoje é outro aeroporto. Muito movimentado e com sinais de saturação. Suas dependências, porém, ainda não exalam o cosmopolitismo de Heathrow, onde o filósofo se instalou por uma semana a convite da administradora. Mas não é essa a questão. O fato é que eu mudei.
O que me interessa em aeroportos agora não é a estrutura neuronal da máquina orgânica, mas as relações sociais que se desenrolam por baixo de sua máscara asséptica e racional. Como protagonista ou como voyeur, me pergunto, por exemplo, por que os ricos carregam bagagens menores que as dos pobres. De Botton acha que é porque os ricos podem comprar qualquer coisa em qualquer lugar.
Oportuno meditar também, no calor dos acontecimentos, sobre as razões que levam um homem a esmurrar o balcão do check-in da JAL, dando gritos lancinantes por causa de um atraso que o fará perder uma série de reuniões de negócios em Tóquio.
"Temos raiva porque somos seres otimistas demais, pouquíssimos preparados para as endêmicas frustrações da existência. Um homem que berra toda vez que perde as chaves ou é barrado no avião demonstra uma tocante, mas ingênua e imprudente fé em um mundo ideal onde não se perdem chaves, nem malas, nem voos."
E aquele sujeito ali... Quantas horas terá se consumido programando as suas férias até ser surpreendido dentro do táxi (a caminho do aeroporto) por um engarrafamento monstruoso? Como lidar agora com o transtorno de ansiedade que tanto o envergonha intimamente? Pior: em que momento ele enfrentará o fato de que é possível tirar férias de tudo, exceto de si mesmo?
"Nos primórdios da história humana, quando nossa luta era para conseguir fazer fogo e transformar troncos caídos em canoas rudimentares, quem poderia prever que bem depois de mandarmos homens para a Australásia ainda estaríamos batalhando para conseguir tolerar a nós mesmos, perdoar aos que amamos e pedir perdão pelos nossos destemperos."
Apesar das estatísticas razoáveis e dos avanços da engenharia aeronáutica, as horas que antecedem a entrada na aeronave são, para muita gente, o prelúdio de uma catástrofe. Mas esse medo, tão absurdo quanto plausível, me faz questionar o que as motiva a fazer compras no free shop minutos antes do embarque. Talvez porque uns chocolates baratinhos ajudem a aproveitar os últimos instantes antes da desintegração total, quando estiverem em queda livre de volta para a Terra.
Rodoviárias devem ter sociologia equivalente, mas a aura dos aeroportos internacionais me parece bem mais paradoxal. Quando me queixo da inépcia desse ou daquele terminal, não é apenas porque acredito no aperfeiçoamento de uma operação, mas também pelo orgulho platônico de ser usuário.
Suspeito que os amantes de aeroportos sejam adeptos de um nomadismo intransigente: não se comprometem com um único país, rejeitam as tradições, desconfiam das comunidades estruturadas e só se sentem em casa nessas zonas intermediárias cercadas por máquinas voadoras, depósitos de querosene, comércios, hotéis para uma única noite e pátios surreais de automóveis.
* Jornalista, escritor e professor universitário. Autor de Perfis, entre outros livros: www.sergiovilasboas.com.br