Recolocar em voo um helicóptero ou um avião que sofreu danos e avarias requer uma minuciosa avaliação das condições do veículo e uso de mão de obra especializada, além de autorização prévia da Anac
Texto e Fotos Ronaldo Santos Publicado em 07/10/2013, às 00h00
Ao iniciar a decolagem, o helicóptero guina à esquerda antes de sair 30 cm do solo e seu rotor colide com o terreno. O Robinson R44 sofre danos graves no motor, no rotor principal, no rotor de cauda, na transmissão, no cone de cauda, nos esquis e nos estabilizadores. Já os sistemas elétricos, de combustível e hidráulico têm avarias leves. Apesar dos estragos, o helicóptero permanece íntegro. Esse acidente sem vítimas aconteceu em 27 de dezembro de 2008, no interior de Goiás, e os detalhes dele estão descritos no relatório do Centro de Investigação e Prevenção de Acidentes Aeronáuticos (Cenipa), baseado em relatos de testemunhas e demais dados de investigação. Segundo o documento, o piloto não havia retirado a trava de fricção do cíclico, dispositivo que impede o movimento do comando, procedimento este previsto no checklist antes da decolagem. Hoje, esse mesmo R44 está novamente em condições de voo, após ter passado pelo processo de reparo dos danos sofridos no episódio. Tal prática, em aeronaves que sofreram acidente ou incidente, é comum no Brasil, reconhecida pela Agência Nacional de Aviação Civil (Anac) e, acima de tudo, segura, segundo garantem oficinas de manutenção aeronáutica especializadas nesse tipo de serviço.
A oficina catarinense Horus, de Joinville, que executa desde 2008 serviços de recuperação e de manutenção em aeronaves Robinson, modelos R22 e R44, e Bell, modelo JetRanger, conduziu os trabalhos de recondicionamento desse helicóptero de Goiás. A empresa tem em seu portfólio a reparação de aproximadamente 40 helicópteros. “A recuperação de uma aeronave é um trabalho artesanal, com processos que reproduzem os de uma linha de montagem da fábrica”, explica Paulo Machado, que é o proprietário da Horus. O preço da reparação de um helicóptero acidentado varia, mas não sai por menos de US$ 200 mil, quando o trabalho ocorre em toda a célula e no motor. Existem também oficinas que reparam aviões a pistão, turbo-hélices e jatos executivos.
Conceitualmente, o termo “recuperação” não é reconhecido nos regulamentos brasileiros de aviação. A Anac utiliza oficialmente a palavra “reparo” para o serviço de recondicionamento ao voo de uma aeronave que sofreu acidente, incidente ou ocorrência de solo, dividindo-a nas classificações de pequena, média ou grande monta. As orientações para a realização dos trabalhos estão contidas na instrução suplementar (IS) número 43.13-004, publicada em agosto de 2012, que substituiu uma instrução de aviação civil (IAC) de 1990.
Para iniciar a recuperação, o primeiro passo é solicitar à agência reguladora uma autorização expressa para os trabalhos. Com a obtenção da liberação, ainda antes de os mecânicos colocarem a mão na massa, a oficina deve confeccionar um laudo de avarias padronizado, incluindo fotografias e ilustrações, que informará detalhadamente aos técnicos da Anac os danos sofridos pela aeronave. Esse foi o procedimento adotado pela Horus antes de começar o conserto do R44 acidentado em Goiás.
O relatório técnico de avarias desse Robinson tem cerca de 150 páginas que detalham todos os sistemas e peças (incluindo seus códigos de identificação), que sofreram danos e que precisaram de substituição. A agência levou cerca de um mês para avaliar o material e dar retorno positivo para o início do trabalho.
A oficina desmontou todo o R44 na fase de levantamento dos danos sofridos após o acidente, revela Afonso Celso Schemin, inspetor-chefe da área de Qualidade da Horus. Com a aprovação do relatório pela Anac, o motor foi retirado e uma oficina terceirizada fez a revisão geral. Depois de revisado, ele passou por testes em um banco de provas. As partes estruturais danificadas do helicóptero foram submetidas a um gabarito, instrumento de ajuste de dimensão e formato. Após isso, as peças avariadas deram lugar a novas.
Com a aeronave já montada, os reparadores acionaram o motor para verificar o funcionamento da parte mecânica e identificar possíveis falhas ou vazamentos. Finalizada essa etapa, o helicóptero seguiu para pintura e passou por ajustes finos, como, por exemplo, balanceamento das pás. Enfim, tiveram início os testes de voo, mediante uma solicitação padronizada enviada à Anac, e deferida.
Reparo da deriva de um Cessna 172
Quando inspecionaram todos os itens e julgaram finalizado o serviço, os mecânicos encaminharam à Anac um formulário de comunicação de conclusão de reparo, o que permitiu à agência revogar a suspensão do certificado de aeronavegabilidade do helicóptero — que havia sido determinada no momento da comunicação do acidente.
O trabalho dos mecânicos durou cerca de três meses, tempo considerado rápido pela oficina, pois a empresa possuía as peças em estoque e não precisou aguardar pela importação do material necessário. O inspetor Afonso Schemin diz que algumas pessoas ainda veem o trabalho de recuperação de forma obscura, pois acreditam que a aeronave danificada recebe peças fabricadas pela própria oficina responsável pelo serviço. “Isso não acontece. Ao contrário, durante o processo de reparo, os itens danificados são substituídos por novos, o que pode tornar a aeronave ainda melhor do que era antes do acidente ou incidente”.
De modo geral, a Anac confia às oficinas homologadas a responsabilidade pela reparação. À reportagem, a agência informou que “normalmente não realiza inspeções para a liberação, pois essa atividade está a cargo das oficinas certificadas”, assim como cabe às empresas a avaliação e o julgamento sobre as condições para uma aeronave voltar a operar.
A Anac não tem registro de quantas máquinas foram recuperadas no Brasil. De acordo com a agência, com uma mudança recente na legislação — que inclui a publicação da IS 43.13-004, em 17 de agosto de 2012 —, será possível uma contagem das autorizações de início de reparos, que retratará de forma mais adequada a quantidade de aeronaves reparadas por danos estruturais de grande monta.
Cruzando as estatísticas dos acidentes ocorridos em 2010 e 2011 com dados disponíveis no site da Anac, na seção do Registro Aeronáutico Brasileiro (RAB), no entanto, verifica-se que aproximadamente 30% das aeronaves que sofreram danos nesse período já se encontram em situação normal de aeronavegabilidade. Os campeões de acidentes são o Robinson R44 e o EMB-202 Ipanema.
Nessa estatística, está um dos monomotores Ipanema da Pelicano Aviação, empresa de pulverização agrícola com sede no Paraná responsável pela operação de oito aeronaves, incluindo também modelos Piper Pawnee e Cessna Ag Truck. Em novembro de 2011, em Mirador (PR), o avião perdeu a sustentação logo após a decolagem e bateu com a hélice no chão. O proprietário da Pelicano, Eder Bueno de Godoy, contou que a temperatura alta na data contribuiu para o episódio. O empresário optou pelo reparo da aeronave, já que os danos sofridos foram pequenos. Ele investiu aproximadamente US$ 50 mil para a recuperação, que foi conduzida pela oficina Aerocampo, de Campo Mourão (PR), em aproximadamente três meses. De acordo com o empresário, a falta de peças para o motor atrasou os trabalhos, já que precisaram ser importadas. Nesse episódio, o dono do avião avaliou que o conserto trouxe benefícios: “O motor já estava com 1.000 horas. Depois do reparo, o grupo motopropulsor ficou zero. Ou seja, a aeronave ficou melhor”.
O interior do R44 após sua recuperação
Em compensação, outro modelo Ipanema da empresa, que se acidentou em 2010, ainda aguarda a restauração. Isso porque, na avaliação de Godoy, há falta de mão de obra especializada para a recuperação de aeronaves, principalmente de chapeadores. “O Brasil está comprando aeronaves e brevetando pilotos, mas não está formando profissionais de manutenção, principalmente de chapa”, avalia Godoy. Segundo ele, com esse cenário, algumas oficinas são obrigadas a terceirizar o trabalho de “chapeamento”, contratando profissionais autônomos com experiência.
Esse é o ramo de atuação do restaurador Douglas Doná há 19 anos. Morador de Birigui, no interior de São Paulo, ele viaja por várias cidades do Brasil para atender a oficinas que o contratam para realizar o trabalho de recuperação de aviões acidentados ou deteriorados por ação do tempo. O ofício ele herdou do pai e do tio, que há mais de 50 anos trabalham com reconstruções de aviões. Na opinião de Doná, os cursos para mecânicos existentes hoje no Brasil não ensinam a fazer de forma desejável o “chapeamento” e, com isso, profissionais experientes nesse trabalho minucioso são poucos. “É complicado e difícil de aprender”, resume.
“O Brasil está comprando aeronaves e brevetando pilotos, mas não está formando profissionais de manutenção, principalmente de chapa”
Eder Bueno de Godoy,
empresário do mercado de aviação agrícola
O empresário Paulo Machado, da Horus, concorda que houve crescimento considerável na aviação nos últimos anos e a formação de mecânicos não acompanhou a evolução. Apesar disso, ele considera o trabalho de reparação de aeronaves realizado por brasileiros incomparável ao executado por norte-americanos, por exemplo. “O ‘chapeador’ brasileiro dá de dez a zero”, compara.
O proprietário da oficina Aerocampo, Laudacir Pontin, faz coro à preocupação em relação à falta de mão de obra. “Os mecânicos com experiência já estão velhos, e se aposentando. E os novos ainda estão fazendo faculdade, com prática quase zero. Isso gera dificuldade não só de recuperar um avião como também para fazer a manutenção do dia a dia”, lamenta Pontin, que conduz a oficina há oito anos e estima ter executado cerca de 30 recuperações de grande porte, sendo a maioria de aviões agrícolas. Segundo ele, na época de safra de soja e milho, a procura por reparos aumenta. O tempo de trabalho varia bastante: um reparo de pequena monta dura cerca de uma semana; de média monta chega a cerca de 20 dias; já as recuperações de grande monta levam de dois a três meses para ficar prontas, sempre considerando a disponibilidade das peças.
A viabilidade econômica de um reparo varia conforme os danos sofridos e as peças que precisarão de substituição. De acordo com as oficinas consultadas para esta reportagem, estimativas de custos seriam imprecisas. As empresas ouvidas também foram enfáticas em garantir que o nível de segurança de uma aeronave reparada após um acidente depende da qualidade do trabalho dos mecânicos e do atendimento às orientações do manual de manutenção de cada modelo de avião ou helicóptero. Marcos César de Oliveira, do Controle Técnico de Manutenção da oficina Go Air, de São Paulo (SP), especializada em helicópteros Robinson, explica que o que determina se uma aeronave tem condições de voltar a operar após um acidente é o seu manual de manutenção. “Em alguns casos, é necessário que o próprio fabricante faça a recuperação. Só ele tem condições de fazer alguns tipos de reparos, pois falta à oficina literatura para executar alguns trabalhos mais específicos”, explica. Foi o que a Robinson confirmou à reportagem de AERO. De acordo com a empresa norte-americana, em caso de danos substanciais à cabine, é recomendado que a aeronave retorne à fábrica, no estado norte-americano da Califórnia.
A confiança no trabalho de reparo é comprovada pelas seguradoras aeronáuticas. As companhias não depreciam aviões e helicópteros que sofreram acidentes e que foram reparados. “A seguradora trabalha muito em cima do que o fabricante determina. Não há uma depreciação em função de sinistro”, garante Alexandre Marroquim, sócio-diretor da corretora de seguros Good Winds, de São Paulo. Ele também avalia que é possível verificar a idoneidade de uma oficina e da origem das peças, que contam com número de série e oferecem subsídios às seguradoras para cobrirem as aeronaves sinistradas. “É possível, sim, fazer seguro de aeronaves que já tiveram algum tipo de sinistro desde que se prove que foi feito tudo conforme estabelece o manual do fabricante”, enfatiza Marroquim.