ICAO anuncia novas recomendações para gestão de risco de fadiga humana e estimula o uso de modelos biomatemáticos para identificar o nível de cansaço de pilotos
Paulo Licati, De Montreal Publicado em 17/10/2011, às 09h09 - Atualizado em 27/07/2013, às 18h45
Cinco e quarenta da madrugada, voo de cruzeiro, nível 370. O comandante do voo Air India Express 812 procedente de Dubai, nos Emirados Árabes, desperta de um sono profundo a cerca de 130 milhas náuticas de Mangalore, na Índia. O copiloto solicita autorização para iniciar a descida. O controle de tráfego aéreo, sem auxílio do radar, nega. Enquanto aguardam, os tripulantes fazem o briefing meteorológico. Passados alguns minutos, os pilotos obtêm a autorização, mas a aeronave está acima de sua rampa de descida. Eles reduzem os manetes e acionam o speed brake (freio aerodinâmico), só que, ao cruzar 8.500 pés, próximo de interceptar o rumo final do procedimento ILS (sistema de aproximação por instrumento) da pista 24, o Boeing 737-800 Short Field Performance continua acima da rampa.
O comandante solicita ao copiloto que baixe o trem de pouso, para aumentar o arrasto e perder altura. A situação torna-se desconfortável. A 7.700 pés, a aeronave cruza o localizador (instrumento que indica o centro da pista) a uma velocidade de 217 nós e o comandante executa curva à direita para corrigir a trajetória. O avião ainda está alto e veloz em relação à rampa.
O jato da Air India sobrevoa a cabeceira a 200 pés e 160 nós, embora o correto nessa situação seja 50 pés e 144 nós, respectivamente. Com a razão excessiva de descida, os alarmes de GPWS (Ground Proximity Alarm System) disparam e o copiloto executa várias vezes o call out: “Go Around, Captain”. Nada, porém, tira a atenção do comandante em sua manobra de pouso. O desfecho do voo Air India Express 812 todos conhecem. Um trágico acidente que pôs fim à vida de 158 pessoas depois de uma tentativa frustrada de arremetida. As investigações do desastre, ocorrido em 2010, apontaram a fadiga humana como um dos principais fatores contribuintes.
A fadiga humana contribui para aproximadamente 20% dos incidentes e acidentes aéreos, mostram as estatísticas do NTSB (National Transportation Safety Board). Segundo pesquisadores do sono, o profissional que precisa tomar decisões rápidas, como é o caso de pilotos, tem de estar pelo menos uma hora acordado antes de reassumir suas funções. Somente assim ele poderá se recuperar satisfatoriamente da inércia causada pelo sono profundo. Os estudos demonstram que a fadiga humana oferece riscos à segurança de voo e ainda mostram como pequenas ações de gerenciamento, o que inclui processos educacionais e orientações de tripulantes, poderiam evitar acidentes e incidentes. E é com base nessas evidências que a ICAO acaba de anunciar novas recomendações para o gerenciamento de riscos da fadiga humana em operações aéreas, com a introdução principalmente do FRMS (Fatigue Risk Management System).
Empresas aéreas como Virgin Atlantic, easyJet, Germanwings e Nas Air já adotam o FRMS. E o que mais impressiona nos discursos de alguns de seus executivos, que falaram durante o Primeiro Simpósio sobre Fadiga na Aviação da ICAO, no fim de agosto último, em Montreal, no Canadá, é a convicção de que a gestão de fadiga representa uma oportunidade de redução de custos. Sim, o FRMS melhora a produtividade das equipes e, assim, diminui a necessidade de contratação excessiva de pessoal, ao contrário do que se poderia supor. Além disso, o sistema previne pousos bruscos, erros, incidentes e acidentes, o que agrada investidores, aumenta a confiança dos usuários e permite uma melhor negociação com seguradoras.
SISTEMA DE GERENCIAMENTO DE RISCO DE FADIGA AUMENTA PRODUTIVIDADE, REDUZ CONTRATAÇÃO EXCESSIVA, CORTA CUSTOS E DIMINUI ÍNDICE DE INCIDENTES
No Brasil, nenhuma empresa aérea possui um programa de gerenciamento de fadiga nesses moldes, mas as recomendações da ICAO e os benefícios financeiros demonstrados por grandes companhias podem determinar mudanças nesse cenário. Durante o evento, ficou claro que, assim como em outros países, a regulamentação brasileira dos aeronautas é fixa e rígida, e não contempla as limitações humanas, além de não possuir base científica, já que a maioria dos estudos sobre o tema não estava concluída quando ela foi redigida.
Em junho de 2011, a ICAO adotou padrões internacionais para o FRMS e, em agosto último, juntamente com a International Air Transport Association (IATA) e a International Federation of Air Line Pilots Associations (IFALPA), lançou dois guias de implementação do sistema, um para os reguladores e outro para os operadores. O FRMS é uma metodologia controlada por dados que permitem gerenciar o risco de fadiga humana associado a diversos tipos de operação. Embora os novos requisitos da ICAO relacionem o FRMS a pilotos e comissários, a metodologia é aplicável também a controladores de tráfego aéreo, profissionais de manutenção e aeroviários.
A metodologia FRMS conta com diversos modelos biomatemáticos para gestão de fadiga. São softwares que ajudam a avaliar o desempenho humano, principalmente no que tange a variações do ciclo circadiano (relógio biológico), a homeostase (tempo acordado) e o sono (débito, quantidade e qualidade). Os modelos estão em constante desenvolvimento, mas já se mostram eficazes ferramentas na avaliação de riscos. Eles também servem para auxiliar na investigação tanto de problemas apontados em relatórios específicos de fadiga como de erros mensurados pelo FOQA (Flight Operations Quality Assurance) e de incidentes e acidentes.
As margens de aproximação dos modelos biomatemáticos com os sentimentos reais de fadiga de um ser humano se aproximam de 80%, confirmam os trabalhos citados no simpósio da ICAO. A metodologia ajuda a empresa aérea a identificar os riscos de fadiga em suas operações, o que lhe permite formatar políticas de escalas mais adequadas às suas missões. Segundo as recomendações da ICAO, o reporte específico para fadiga deve ser colocado ao alcance de todos e seu preenchimento tem de ser incentivado em casos de sentimento de cansaço antes, durante e após os voos, sempre respeitando os três R’s: bom relacionamento, respeito mútuo e responsabilidade entre empresas e funcionários.
Um dos aspectos mais importantes do debate em torno do FRMS é que oportunidade de sono é diferente de horas de descanso. A escala tem de levar isso em consideração, sugerem os estudos. Um dos exemplos citados durante o Simpósio da ICAO é o risco de submeter o mesmo tripulante a madrugadas seguidas de trabalho. Os debates mostraram que o fato de ele ter o dia inteiro de folga não garante que irá dormir as horas necessárias e é isso que precisa ser monitorado.