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Velocidade

A volta dos supersônicos

Conheça os projetos civis que prometem cruzar a atmosfera a Mach 1.5 sem gerar os estrondos sônicos que inviabilizavam a operação do Concorde sobre regiões continentais



Aerios AS2 tem apoio da Airbus

O primeiro voo supersônico ocorreu no final da década de 1940, com o advento do Bell X-1, comandado pelo norte-americano Chuck Yeager. Desde então, a indústria militar continua a desenvolver aeronaves capazes de voar cada vez mais rápido, como os caças de quinta geração F-22 Raptor e F-35 Lightning II. A indústria da aviação civil também superou a barreira do som ao conceber o franco-britânico Concorde e o soviético Tupolev 144, projetos dos anos 1950 e 1960. Mas o fim das operações do Concorde em 2003, precipitado por um acidente fatal três anos antes, encerrou uma era de operações civis supersônicas. Cerca de uma década e meia após o desastre com o voo Air France 4590, a indústria dá mostras de que voltará a produzir aeronaves capazes de romper a velocidade do som para o transporte aéreo de passageiros nos próximos anos.

Custos, ruído e poluição

Somados ao sentimento de insegurança após o acidente do Concorde, os altos custos operacionais e os elevados índices de emissão de poluentes na atmosfera contribuíram para o fim prematuro dos voos regulares acima da velocidade do som. Para sobrevoar regiões continentais, as aeronaves supersônicas eram obrigadas a operar com velocidades reduzidas, o que aumentava consideravelmente o consumo de combustível, a poluição sonora e a emissão de poluentes na atmosfera, ultrapassando os limites aceitáveis de cada um desses parâmetros. Ao vencer a barreira do som (V > Mach 1.0), o avião supersônico gera uma onda de choque conhecida por sonic boom (ou estrondo sônico) – uma perturbação provocada pelo deslocamento através do fluído (ar) acima da velocidade do som –, que pode provocar danos físicos e estruturais quando ocorre sobre área urbana ou povoada, de acordo com um estudo realizado em 1975 pela FAA (Federal Aviation ­Administration). Esse fenômeno pode ser frequentemente observado quando a aeronave “quebra” a barreira do som à baixa altitude, pois forma uma nuvem cônica ao redor da aeronave acompanhada de um estrondo.

Nenhuma outra aeronave civil supersônica entrou em operação depois do Concorde. Na aviação regular, o foco da indústria recaiu sobre o desenvolvimento de aeronaves maiores, com superior capacidade de transporte de cargas e passageiros, mas mantendo padrões subsônicos das velocidades dos grandes jumbos, caso dos atuais Boeing 787 e Airbus A380. Já na aviação de negócios, em que o tempo do deslocamento é um bem muito valioso, há aeronaves voando com velocidades próximas do limite supersônico, como os modelos da Cessna e da Gulfstream, que atingem até 1.142 km/h em cruzeiro.


Projetos atuais se beneficiam de novos estudos aerodinâmicos:
boom sônico é o principal desafio

Diversas empresas iniciaram estudos e têm se dedicado a desenvolver uma nova aeronave civil de alta velocidade para a aviação de negócios na tentativa de retomar o voo supersônico e se beneficiar da velocidade acima da do som. Um estudo da NASA realizado em 2000 estabeleceu algumas diretrizes que serão fundamentais para tornar o projeto viável comercial e operacionalmente. Voar com o dobro da velocidade atual das aeronaves subsônicas, ter um alcance mínimo de 4.000 milhas náuticas com redução do estrondo sônico ao menor nível possível, emitir o mínimo possível de poluição tanto sonora quanto atmosférica e ter custo ao cliente final equivalente aos valores praticados hoje no mercado são algumas das diretrizes definidas pela NASA.

Novos conceitos

Diante do desafio, alguns novos conceitos tecnológicos surgiram, frente aos antigos problemas detectados nas operações do Concorde e do Tupolev 144, convidando a uma nova era do voo supersônico, que acredita no emprego de compósitos na construção de boa parte da aeronave, devido a seu alto grau de resistência às altas temperaturas impostas por esse tipo de voo e por serem muito mais leves do que as ligas de alumínio, o titânio e outros materiais anteriormente empregados, porém mantendo uma boa durabilidade durante o tempo em que a aeronave estiver em operação.

Para lidar com a questão da visibilidade externa dos pilotos a partir do interior do cockpit, tanto no táxi quanto nas fases de pouso e decolagem, a NASA sugeriu um sistema chamado “External Visibility System” (EVS), que seria um cockpit sem janelas, transmitindo imagens externas aos monitores instalados na cabine dos pilotos por meio de câmeras. Com o emprego de tecnologia de infravermelho, o dispositivo permitirá, segundo se espera, que o piloto venha a comandar o avião como se estivesse em um simulador de voo, e não em uma aeronave real, o que daria uma boa visibilidade da área externa principalmente em condições meteorológicas desfavoráveis e aumentaria consideravelmente o alerta situacional dos tripulantes. Diante da possibilidade de detectar objetos e eventos externos de maneira mais fácil e destacá-los na tela (algo similar ao que ocorre hoje com o TCAS), os engenheiros esperam eliminar os pesados sistemas hidráulicos e elétricos que equipavam o Concorde para mover seu nariz e para-brisas de alta velocidade por meio de um sistema mecânico, o que também elevava o peso total da aeronave, contribuindo para o aumento do arrasto aerodinâmico em baixas velocidades e, por conseguinte, o gasto de combustível.



Boeing (alto) e Lockheed Martin estudam novos projetos para aviação comercial

Além da utilização dos compósitos, também será necessário empregar novos materiais para o desenvolvimento de motores com objetivo de aumentar a temperatura de operação do propulsor e reduzir a emissão de poluentes. Acredita-se que o novo grupo motopropulsor será equipado com um bocal único de admissão com um fan – essa tecnologia empregada nos aviões subsônicos da aviação civil já demonstrou ser econômica e segura –, além de utilizar biocombustíveis. Especula-se, ainda, que o ponto chave da engenharia aerodinâmica virá do estudo do escoamento laminar do fluxo de ar na aeronave, que considera o deslocamento das moléculas de ar o mais próximo possível da fuselagem e das asas. Sabe-se que o deslocamento das moléculas de ar na aeronave afeta diretamente as condições do voo, reduzindo ao menor nível possível o arrasto no escoamento dessas moléculas.

Projetos em curso

Nesse cenário, algumas empresas começaram a desenvolver seus projetos de aeronaves supersônicas, como a norte-americana Aerion com o AS-2, que ganhou um parceiro de peso em 2014, a Airbus. O consórcio europeu emprestou sua experiência em homologação de aeronaves em troca da expertise da tecnologia do escoamento laminar supersônico desenvolvido pela Aerion há anos. Com mais de 50 cartas de intenção de compra no valor inicial unitário de US$ 100 milhões, a Aerion estima entregar as primeiras aeronaves já em 2020.

O principal diferencial do AS-2 é o fato de atingir a velocidade do som sobre regiões continentais sem causar danos ao solo em razão do formato aerodinâmico de suas asas, que apresentam uma redução significativa do arrasto por conta do aumento da aderência do escoamento do fluxo de ar em suas superfícies e, consequentemente, da redução na onda de choque. O tempo de voo estimado de uma etapa entre São Paulo e Nova York terá, segundo o fabricante da aeronave, uma vantagem de 2h48min voando a Mach 1.5 em relação a um avião civil subsônico. O AS-2 será equipado com três motores, o que reduzirá a emissão de poluição sonora, já que uma aeronave com dois motores dependeria de muito mais potência para ter o mesmo empuxo do que um trijato.


Spike S2:
sem janelas


Desenvolvimento de motores mais eficientes  depende do emprego de novos materiais

O AS-2 terá dimensões dezenas de metros menores do que as do Concorde porque atenderá ao mercado da aviação de negócios, transportando apenas 11 passageiros, dependendo da configuração de cabine desejada. Atualmente, o Aerion AS-2 é o projeto de avião supersônico mais avançado, já tendo passado pelos testes em escala juntamente com a NASA, iniciando em pouco tempo a produção da aeronave de testes.

Outra aeronave em desenvolvimento para o mercado da aviação de negócios é o Spike S-512, projetado pela empresa Spike Aerospace, com capacidade para transportar 12 a 16 passageiros com um alcance de 7.500 quilômetros sem necessidade de reabastecimento. Mesmo estando em fase de estudos, a empresa estima que seu valor poderá variar entre US$ 60 milhões e US$ 80 milhões.


Previso para 2035, o jato ­ICON II deverá transportar entre 100 e 150 passageiros

Aviação regular

A Lockheed Martin, já muito conceituada no mercado pelos produtos aeroespaciais que desenvolve, também marca presença na competição com o seu projeto N+2, mas ainda não disponibiliza as informações sobre o desenvolvimento do projeto nem sobre o prazo para iniciar a operação na aviação comercial. O que se sabe é que a aeronave deverá transportar 80 passageiros e alcançar uma distância de 5.000 km em apenas 2h30, tendo à sua disposição três motores que estão sendo desenvolvidos especificamente para esse programa, a fim de oferecer um novo sistema de propulsão aeronáutica.

Ainda sobre o mercado de aeronaves com capacidade para transporte de grande número de passageiros, a Boeing estuda um novo modelo, totalmente diferente dos realizados entre as décadas de 1960 e 1970 com o Boeing 2707. O novo estudo da empresa aponta para um projeto chamado ICON II, que deverá ter uma disposição entre 100 e 150 assentos e seria lançado entre 2030 e 2035. De acordo com os ensaios em escala, o modelo já demonstra uma redução de 30 dB a 35 dB de ruído na comparação ao Concorde.

A indústria segue otimista em relação à nova era do voo supersônico na aviação civil, com o surgimento de aeronaves com o dobro de velocidade das atuais sem os efeitos aerodinâmicos de compressibilidade do ar de projetos do passado. Novos modelos de asas e fuselagem estão sendo exaustivamente testados em parceria com a NASA, que já adquiriu um grande conhecimento a partir dessas pesquisas. Ao se considerar as tecnologias disponíveis atualmente em comparação às existentes na época em que se projetaram o Concorde e o Tupolev 144, ficam evidentes as condições mais favoráveis de se desenvolver uma aeronave civil supersônica com uma probabilidade alta de ser um sucesso não só operacional, mas principalmente comercial, daqui a 20 anos. Para o mercado da aviação de negócios, o otimismo é ainda maior diante da perspectiva da entrada em operação de uma aeronave supersônica em menos de uma década.

Além do desafio tecnológico, serão necessárias revisões na legislação aeronáutica para permitir o sobrevoo supersônico em áreas continentais – se as novas tecnologias se provarem viáveis – e também avaliações do panorama da infraestrutura aeroportuária e de controle de tráfego aéreo para evitar percalços como os enfrentados pelo superjumbo Airbus A380. Os testes dos primeiros protótipos dessa nova geração de aeronaves devem dar uma ideia mais clara do futuro do voo acima da velocidade do som no mercado civil.

Por Carlos Gozales, João Gomes e Oswaldo Baptista
Publicado em 16/05/2015, às 00h00


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