A experiência de embarcar com gorro e óculos em um biplano fabricado em 1933 e sentir o vento no rosto remonta aos primórdios da aviação
Foto: Fernando Monteiro
Um convite tão inesperado quanto irrecusável. Ao lado desta raríssima e bem-conservada máquina vermelha, sinto uma estranha convicção. Jamais poderia declinar diante de uma oportunidade generosa como esta: voar no mais antigo avião em operação do Brasil.
O biplano monomotor Fleet fabricado no Canadá em 1933 tem o porte de um impávido puro-sangue. Mira o horizonte com uma serenidade inabalável, forjada em seus mais de 80 anos de existência. Recebo um gorro de couro com um par de óculos acoplado que remontam ao princípio do século passado. "Só faltou o cachecol", penso.
Com apenas cinco anos a menos do que seu clássico, o piloto e dono da aeronave é uma dessas velhas águias que preservam a contagiante vitalidade de um menino sonhador sem perder a serenidade de um aviador com mais de 50 anos de "pé e mão". Voar, afinal, é uma das sagradas circunstâncias em que homem e máquina, através das nuvens, assumem uma só silhueta.
Piso na base da asa para entrar na segunda célula do biplace. Apoio as mãos sobre a fuselagem e mergulho as pernas para dentro do cockpit. O assento é confortável. Enquanto fixo o cinto de segurança, o comandante dá a ordem para que o mecânico acione as hélices. O ronco do motor radial Kinner B-5 de cinco cilindros (aparentes!) é dócil e vigoroso. São 125 cavalos de potência, que levantam grama e poeira nas proximidades do hangar. Posiciono os óculos e sinto o solavanco dos primeiros movimentos da máquina. Estamos partindo.
O biplano faz táxi até a cabeceira 22 do Aeródromo Fazenda Vale Eldorado, no interior de São Paulo, uma pista particular em torno da qual nasceu um condomínio. Além do manche, noto os cabos dos comandos traseiros passando pelo assoalho. "Não obstrua nada", ouço em meio à barulheira do motor. O avião avança sobre o asfalto e ganha aceleração. Metros adiante, a cerca de 100 km/h, deixa o solo. Alçamos voo a bordo de uma relíquia com mais de oito décadas de operações.
O vento no rosto extasia. O Fleet estabiliza a uma altitude não muito elevada. Olho para cima e, por obra e graça do destino, um pássaro cruza sobre nossas cabeças no sentido contrário. Viro o pescoço e, sem a pressurização ou o aperto de uma cabine, desfruto da sensação de "voar de verdade".
O som estrepitoso do motor é parte do pacote, assim como o cheiro do combustível queimando. "É como voar com uma motocicleta", dizem os aviadores. Após a primeira curva, deixo-me tomar pela satisfação de reviver o que os pioneiros da aviação inventaram. Com um dos braços para fora do cockpit e a brisa batendo forte na cara, tento dizer algo. Em vão. Com o barulho, opto pela comunicação por gestos, e coloco o polegar em riste.
O passeio ganha ares mais gráceis. O clima está agradável. Sol e calor apesar da altitude e do inverno. Executamos uma sequência de rasantes no sentido longitudinal da pista antes de iniciar a preparação para pouso. Perfazemos uma confortável aproximação. O toque na pista é forte. Após a chacoalhada, o avião manobra e regressa majestoso para o hangar.
A magnificência do Fleet desligado comove os mais atentos. Neste raro exemplar há até autógrafos de Richard Bach, escritor do clássico Fernão Capelo Gaivota, que usa a história de uma gaivota para falar sobre liberdade, aprendizagem e perdão. "Ele é um apaixonado pelo Fleet e ficou louco quando viu o meu", diz o dono da máquina. Metáfora e realidade nas nuvens, quem diria?
Por Giuliano Agmont
Publicado em 02/11/2017, às 09h00 - Atualizado às 13h22
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