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Podem sobrar pilotos

Corrida às escolas de instrução de voo, recordes de emissão de brevês, queda do crescimento do setor. Há risco de faltar assento para tantos candidatos a comandantes


 Ilustração Douglas Fernandes

Falei outro dia ao telefone com um candidato a piloto, interessado em mergulhar de cabeça no mundo da aviação. Com dois filhos pequenos e se aproximando dos 40 anos, ele está com problemas para proporcionar à família o conforto que considera adequado. O rapaz me explicou que vê na aviação a salvação de sua lavoura. Quer ser piloto! Para alcançar o objetivo, planeja vender a casa onde mora e se desfazer das prestações (a perder de vista) que ainda tem pela frente. Com o dinheiro, calcula, poderá pagar o curso e viver razoavelmente bem até conseguir um bom emprego como piloto. Avião ou helicóptero? Tanto faz, ele diz.

A origem desse e de diversos sonhos semelhantes está relacionada ao crescimento de dois dígitos que a aviação civil tem registrado nos últimos anos e na premissa de que faltarão pilotos no país em poucos anos, conforme se ouve no noticiário de modo sistemático. O consenso entre os aviadores que atuam no mercado, porém, não condiz com a tese da escassez de tripulantes propagada aos quatro ventos. Os resultados práticos até o momento resumem-se a uma tentativa de reforma no Código Brasileiro de Aeronáutica (CBA), que permitiria a "importação" de pilotos estrangeiros por um período de cinco anos, e uma verdadeira corrida às entidades de formação de pilotos. As principais delas, aliás, já enfrentam dificuldade para agendar os voos de instrução. Outro fenômeno é o acúmulo de intermináveis currículos nas caixas postais eletrônicas de pilotos mais influentes, a espera de indicações que tendem a se prolongar cada vez mais.

Sensacionalismo e retrocesso
Para o comandante Rodrigo Duarte, presidente da Abraphe (Associação Brasileira de Pilotos de Helicóptero), entidade da qual faço parte, o discurso de que há (ou haverá) um déficit de pilotos, situação que dificultaria o crescimento da aviação brasileira, tanto na aviação comercial como no mercado de exploração de petróleo, é sensacionalista. Na opinião dele, trazer pilotos estrangeiros para voar no Brasil pode garantir um retrocesso enorme ao mercado de formação aeronáutica, que começou na década de 1930 com Assis Chateaubriand, muito mais conhecido por sua veia jornalística e por sua ligação com as artes. Ele criou a Campanha Nacional da Aviação e envolveu no projeto as altas esferas da sociedade da época. O resultado foi a criação de cerca de 400 aeroclubes por toda a extensão do território nacional e a distribuição de mais de 2.000 aeronaves, o que garantiu, a partir de então, a condução desse nicho de mercado altamente técnico por gente daqui. Manter aeronaves nacionais sendo operadas por aviadores brasileiros é, no mínimo, uma questão de respeito ao esforço do que tem sido feito ao longo dos anos para formar nossos pilotos.

Quando comecei a reunir informações para escrever este artigo, fui lembrado de que há cerca de 600 aviadores brasileiros voando no exterior e que seria uma questão de justiça permitir a entrada de estrangeiros por aqui também. Mas a coisa não é o que parece ser. Basicamente dois motivos levaram os brasileiros a buscar espaço em cabines de aviões de outras nacionalidades. Diante dos colapsos de Varig, Vasp e Transbrasil, aviadores qualificados perderam colocação nas empresas aéreas brasileiras, o que contribuiu, e muito, para o êxodo nacional. A busca por melhores condições, ou pela aventura de viver com outras culturas, também contribuiu para a saída de tantos pilotos. O mais importante, porém, é o fato de que esses aviadores só conseguiram espaço em países que não se preocuparam em criar sua própria estrutura para formar pilotos. Países que possuem essa estrutura costumam valorizá-la e só permitem em seus cockpits cidadãos portadores de passaportes nacionais. Por que teríamos que agir de forma diferente?

fotos: Rodrigo Cozzato

Emissão de licenças não para
A não ser que haja uma boa carta em alguma manga, a possível mudança no CBA seria inócua. Pelo menos é o que sugere um estudo da Boeing, que prevê até 2030 uma demanda de 460 mil novos e bem-preparados pilotos para atender ao crescimento previsto na aviação em todo o mundo. Além disso, o estardalhaço da mídia em torno da falta de pilotos rendeu bons resultados. Em 2010, a Anac emitiu 1.917 licenças de PP (pilotos privados), 410 delas de helicóptero. Para o caso de PC (pilotos comerciais), que na teoria garante ao seu detentor o ingresso no mercado de trabalho, o crescimento também foi considerável e atingiu a marca inédita de 1.053 licenças, das quais 262 para pilotos comerciais de helicóptero. Chama a atenção o fato de que, embora o número total de helicópteros corresponda a praticamente 13% da frota nacional, as escolas de formação de pilotos de helicóptero estão colocando no mercado cerca de um quarto do total de pilotos comerciais. O número de pilotos tanto de helicópteros quanto de avião suplanta, em muito, a quantidade de aeronaves que desembarcam anualmente em nosso território, apontando para um superávit de pilotos, situação que vai se agravar se levarmos em conta que esses recordes de emissão de licenças foram extrapolados já em meados de 2011.

O problema principal não é a quantidade, mas a qualidade dos profissionais que estão sendo preparados para conduzir nossas aeronaves. Um executivo de uma companhia aérea brasileira, que pediu para não ser identificado, desabafa: "O copiloto que é contratado por nós tem, muitas vezes, inúmeras deficiências operacionais. É comum a preparação desse profissional recém-contratado levar de oito a 12 meses até que finalmente possa ocupar seu assento na aeronave".

A carteira de PC e as horas de voo
Embora a licença de PC seja uma espécie de carteira de trabalho do aviador, ainda não é suficiente para seu dono ser aceito no mercado. Dificilmente um piloto recém-formado consegue seu lugar ao sol com menos de 500 horas de voo. Daí a pergunta: como um piloto que se forma PC com 150 ou 200 horas de voo chegará ao número que as companhias aéreas consideram ideal? Resposta: puxando faixa no litoral, voando para algum fazendeiro ou ministrando instrução aérea. Mas como as horas voadas nessas aeronaves podem ser úteis para um piloto que tem por objetivo comandar um moderno jato comercial?

#Q#

Conversei com Adalberto Febeliano, diretor de Relações Institucionais da Azul Linhas Aéreas, a respeito. Ele me disse que concorda que a formação do aviador brasileiro deve ser repensada e que a Azul procura minimizar essa falha valorizando o aprendizado que o candidato a piloto inclui em seu currículo além das horas voadas. Detalhes como a formação numa escola de aviação que garanta padrões de qualidade elevados, curso superior em aviação e experiência voando no exterior são exemplos de itens que vão diferenciar currículos ante outros que simplesmente trazem um razoável número de horas de voo. Diante da qualidade da atual formação dos pilotos brasileiros, o executivo mostra-se prudente: "Esse expressivo número de pilotos que estão se formando não garante necessariamente que as vagas nos cockpits serão preenchidas a contento".

O dilema dos táxis-aéreos
Também troquei ideias com o comandante Ronaldo Jenkins, diretor-técnico do Snea (Sindicato Nacional das Empresas Aeroviárias). Para ele, contratar pilotos estrangeiros está longe de ser uma solução. "Ao contrário, vamos ter mais problemas, pois virão para cá principalmente pilotos de países com uma estrutura de formação menos desenvolvida do que a nossa. Além disso, teremos dificuldade de comprovar a experiência de voo deles", sustenta. O diretor do Snea acredita, ainda, que não há falta de pilotos no mercado de aviação regular. "Com o dólar baixo, muitos brasileiros que voavam lá fora estão voltando. E o crescimento do transporte aéreo do país também já dá sinais de arrefecimento".

Jenkins reafirma, porém, que existem, sim, problemas pontuais de falta de piloto no transporte aéreo de pequeno porte, principalmente nas empresas de táxi-aéreo. "Não é que vão faltar pilotos, já estão faltando, mas a solução não é importar recursos humanos. Temos de modernizar a instrução, a formação de nossos aviadores deve ser direcionada e adequada às funções que vão exercer". Segundo ele, também não dá para dizer que vão sobrar pilotos, pois o crescimento, embora em queda, ainda será considerável nos próximos anos. "Agora, não vejo problemas para os postos de comandante. Temos copilotos suficientemente experientes para suprir a demanda futura do país. E, repito, o que precisamos é melhorar a qualidade do ensino".

Piloto-estagiário, por que não?
Parece claro que a ideia de Assis Chateaubriand foi ótima, só precisa ser ajustada para a nova realidade da aviação. Uma boa proposta veio da Abraphe, que sugeriu à Anac a criação do estagiário, figura muito comum em diversas profissões, mas que não existe por enquanto na aviação. O piloto-estagiário seria fundamental para criar uma ponte entre a formação em uma instituição de ensino e o primeiro emprego. Evidentemente, esse profissional não poderia ser confundido com o copiloto, que é um aviador com funções muito bem-definidas, capaz de substituir o comandante em emergências.

Gelson Fochesato, presidente do Sindicato Nacional dos Aeronautas, concorda com a tese de que a formação voltada para as atuais necessidades do mercado fará muito bem à aviação brasileira, mas considera que os pilotos jamais serão óbice para crescimento do setor. "O gargalo não são os pilotos. O gargalo é a infraestrutura aeroportuária e o nosso gerenciamento de espaço aéreo. Há de se fazer investimentos nesses setores para que a aviação brasileira possa continuar a crescer", defende.

O diretor de Operações de Aeronaves da Anac, Carlos Eduardo Pellegrino, mostra-se preocupado com o aumento da demanda por licenças - que se tornaram, aliás, mais um gargalo da aviação. Mas prefere manter-se isento em relação à polêmica da falta ou não de pilotos. O que Pellegrino assente é que a qualidade da formação precisa melhorar: "Voar em um ambiente cada vez mais denso de aeronaves, interagir com uma tecnologia em constante evolução e gerenciar tanto sistemas como pessoas exigem do aviador competências que extrapolam a simples habilidade motora para atuar bem nos comandos de uma aeronave".

Solução existe há décadas
Diante das evidências, concluo que a deficiência do sistema está menos no número de aviadores e mais na qualidade desses profissionais. E a mágica da solução está debaixo dos nossos narizes: precisamos readequar e aproveitar melhor a enorme infraestrutura existente, disponível desde a década de 30, para que pilotos brasileiros, formados aqui, continuem voando nossas aeronaves e possam manter aquecido o mercado nacional.

Sobre o candidato a piloto do início deste artigo, confesso que fiquei sem saber exatamente o que dizer. Até porque, embora a carreira de aviador seja uma das mais bonitas que conheço, e a recomende para qualquer um que se interesse por ela, com a quantidade de gente correndo atrás do mesmo objetivo, penso que não haverá lugar para todos os que almejam ocupar os assentos 1P e 2P das nossas aeronaves.

Ruy Flemming é piloto de aviões e helicópteros executivos e diretor da Abraphe

Situação crítica nas plataformas de petróleo
por Giuliano Agmont

O principal problema em torno da falta de pilotos ocorre nas plataformas de petróleo da costa brasileira. Com a descoberta do pré-sal, a demanda cresceu além da capacidade de ajuste das empresas de táxi-aéreo que atendem ao mercado offshore e o que se vê é uma situação delicada em relação à mão de obra. "Somente a Petrobras tem hoje cerca de 100 helicópteros em operação nas plataformas e deve chegar a 200 até 2020", contabiliza Fernando Alberto dos Santos, superintendente do Sneta (Sindicato Nacional das Empresas de Táxi-Áereo). "Para cada aeronave, precisamos de cinco a seis tripulantes, já que temos escalas de 15 dias de trabalho por 15 de folga, além das férias e do período de simulador no exterior".

A ideia da alteração da lei para permitir a contratação de pilotos estrangeiros em caráter temporário nasceu desse impasse. "No fundo, é uma solução que não interessa às empresas, porque manter pilotos estrangeiros no Brasil gera dificuldades de adaptação. Mas é uma opção, temporária, diante do problema gravíssimo que temos de falta de mão de obra. Tem empresas que deixaram de participar de licitações por esse motivo", afirma Santos. O superintendente do Sneta reconhece que existem pilotos capazes de suprir a demanda futura nas plataformas, tanto os recém-licenciados PC como aqueles que já voaram off-shore e hoje estão na aviação executiva ou no exterior. "O problema é que os mais novos precisam de tempo e investimento para adquirir a proficiência necessária para voar sobre o mar e os patamares salariais já atingiram níveis críticos de viabilidade do negócio", pondera Santos. Segundo ele, um piloto de equipamentos de médio porte recebe de R$ 15 a 17 mil enquanto o de aeronaves maiores pode ganhar de R$ 22 a 25 mil. "Estamos nos limites de salários. As empresas petroleiras têm forte poder de barganha e as margens dos táxis-aéreos são baixas com riscos altos. Além disso, nem sempre divulgam prévias de demanda futura de helicópteros para nos prepararmos".

E qual é a solução? Investir na formação dos novos pilotos. Hoje, o Sneta trabalha junto à Petrobras e à Anac para conseguir recursos do Prominp (Programa de Mobilização da Indústria Nacional de Petróleo e Gás) e acelerar a formação de tripulantes. "As empresas hoje bancam essa formação, mas é uma iniciativa tímida perto do que é necessário. Para tornar um piloto comercial habilitado para voar off-shore, com segurança, é necessário cerca de um ano de preparação, o que requer alto investimento. E sem a ajuda da indústria do petróleo fica complicado".

Ruy Flemming | Ilustração Douglas Fernandes
Publicado em 08/12/2011, às 14h36 - Atualizado em 27/07/2013, às 18h45


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