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Pelo fim do táxi-aéreo clandestino

Entrevista / Milton Arantes Costa


Milton Arantes Costa

Comandante Milton Arantes Costa, presidente da ABITAer

Aos 45 anos de idade, o comandante Milton Arantes Costa, goiano de Inhumas, tem uma trajetória comum entre os empresários do mercado de táxis-aéreos. Deixou sua cidade natal adolescente para começar a trabalhar em uma oficina de manutenção, tirou habilitação estudando sozinho e comprou o primeiro avião, um Cessna 172, trabalhando como mecânico. “Aprendi a voar nele”, conta o piloto, hoje com mais de 10 mil horas de voo. Depois, tornou-se tripulante de táxi-aéreo e passou por várias empresas antes de decidir montar a sua, em 2003, a Pec Táxi Aéreo, que começou em Macapá e se transferiu para Goiânia.

No início, fazia malotes interligando o país e cuidava sozinho da manutenção. Atualmente, a empresa tem três turbo-hélices voando 400 a 500 horas por mês. A trajetória o levou a montar a Associação Brasileira de Táxis Aéreos (ABTAer), que chega aos três anos de existência com 69 membros que operam 500 aeronaves. Segundo ele, existem no Brasil pouco mais de 140 táxis-aéreos que detêm um total de pelo menos 1.200 aviões e helicópteros. “A ABTAer surgiu quando a Anac decidiu fechar seus escritórios regionais, criando muitos problemas para os operadores do interior do país”, lembra. Nesta contundente entrevista, concedida na sede de AERO Magazine, Milton Arantes Costa cobra das autoridades medidas urgentes contra seu principal concorrente, os táxis-aéreos clandestinos.

"No ano passado, mais de 90% das aeronaves utilizadas durante o GP do Brasil de Fórmula 1 eram piratas"

Aero Magazine- Qual é a situação dos táxis-aéreos hoje
no Brasil?

Milton Arantes Costa
Existem muitas empresas pequenas, familiares, responsáveis por quase 70% do transporte aeromédico brasileiro. São táxis-aéreos com um preço diferente daquele praticado por grandes empresas. A maior parte do transporte aeromédico do Brasil é feito por bimotor de porte médio, como o Seneca. Esse é um mito que precisa ser quebrado. As autoridades tem que entender qual é a função do taxi-aéreo, que cuida, por exemplo, da saúde e da alimentação de índios na região da Amazônia, onde as viagens de barco duram mais de 20 dias. Os táxis-aéreos trabalham para os Correios, transportam dinheiro e valores em geral, oferecem UTI aérea... Ou seja, prestam um serviço público de transporte que deveria ser do governo. O problema é que não existe uma política para proteger esse empresário, pelo contrário. Tenho escutado dia após dia de empresários que estão inclinados a fechar suas empresas.

O que está acontecendo?

A legislação que rege uma empresa pequena de taxi-aéreo no Brasil é a mesma do operador de voos intercontinentais. É uma legislação impossível de ser cumprida por empresas pequenas e médias, principalmente da região Norte, com manuais sem fim. E, de um período para cá, a Anac começou a suspender essas empresas. Tivemos mais de 20 empresas suspensas nos últimos 18 meses. Considere sete aeronaves com três tripulantes cada e calcule o tamanho do prejuízo. No Amapá a situação ficou muito complicada. O problema é que, muitas vezes, a Anac te cobra um determinado manual, você protocola o documento e tem de esperar seis meses, às vezes, um ano ou mais para ter uma resposta, e ele é obrigatório. O empresário fica desnorteado porque recebe autuações e suspensões, mas não pode exigir prazo da autoridade.

Por favor, dê um exemplo.

Temos o mesmo requisito de jornada de trabalho e de descanso de uma linha aérea regular. O taxi-aéreo fica extremamente vulnerável. Vejo o caso de UTI. Muitas vezes o avião tem de aguardar o paciente estar apto a embarcar, mas isso pode demorar horas até que o hospital libere. Tive um paciente que se acidentou durante o Rali dos Sertões e tive de buscá-lo em São Luiz, no Maranhão, para levá-lo até Curitiba, no Paraná. Mas a jornada do meu piloto terminou e precisei fretar outra aeronave em Bauru. O problema é que meu passageiro estava com politraumatismo e a família ficou muito contrariada. Já levamos esse problema para a Anac, mas eles dizem que falta pessoal e que o governo não abre concurso. Não acho que seja esse o ponto principal. O funcionário público precisa executar suas tarefas em tempo menor, ser mais produtivo. Mas a estabilidade faz com que ele atenda do jeito que quer.

Qual a consequência das suspensões?

Se você suspende uma aeronave e a empresa precisar honrar seus contratos, a única saída é sublocar aeronave. Uma semana, 30 dias, três meses... Isso quebra a empresa e, se não quebrar, gera no coração do empresário uma dúvida sobre permanecer no segmento ou não. Note que tudo o que disse até agora não tem relação com crise econômica. Estou falando exclusivamente do excesso de burocracia, de exigência, que criou condições para a disseminação da cultura do táxi-aéreo clandestino.

Antes de falarmos sobre os “piratas”, queria esclarecer um ponto. Os empresários dizem que o grau de exigência da Anac é impraticável, mas afrouxar as regras não abre um precedente para termos problemas de segurança de voo?

O quesito segurança de voo é inegociável. Só devem permanecer no mercado táxis-aéreos que oferecem segurança. A nossa crítica é sobre o excesso de burocracia. Por exemplo, uma empresa que não transporta artigos perigosos não deveria ser obrigada a ter um manual de artigos perigosos, e ter um funcionário com um curso nessa área. Outro problema que temos enfrentado é a exigência do simulador, com a RBAC 61. Veja o caso das centenas de aviões King Air operacionais no Brasil. São três pilotos por aeronaves que precisam fazer o treinamento nos Estados Unidos. São 25 mil dólares por tripulante, faça as contas. O prazo agora foi prorrogado, mas só postergamos o problema. O King Air não precisaria ter certificação de tipo. O próprio fabricante nos disse que, nos EUA, ele é uma aeronave classe, um bimotor, e não é requerido manual. E o que está acontecendo? Temos uma frota de King Air, que é considerado um dos bimotores leves mais seguros do mundo, pronta para ser renovada, com financiamento disponível, mas os empresários estão vendendo suas aeronaves e comprando modelos de categoria inferior para não ter de se sujeitar às exigências de simulador.

Em suma, o empresariado brasileiro de pequeno e médio porte está inseguro em relação ao futuro. Também porque ele não sabe se vai conseguir operar uma aeronave que custa mais de dois milhões de reais por problemas burocráticos, ele gasta e a aeronave não pode operar. Há ainda o fiscal da Anac muitas vezes sem preparo para avaliar o instrutor e a empresa. Ele adota uma postura intimidadora para suprir seu falta de conhecimento. Não se trata de afrouxar as exigências, mas de não fazer cobranças absurdas e desnecessárias. Isso abre brecha para um novo nicho de mercado, o dos clandestinos, que são operadores privados, com problemas para arcar com os custos operacionais, que chegam a 50 mil reais por mês em alguns casos, e acabam “alugando” seus aviões mesmo sem possuir certificação. E aí, sim, temos problemas de segurança de voo.

Milton Arantes Costa

Qual é a gravidade do problema ligado aos táxis-aéreos clandestinos?

No ano passado, mais de 90% das aeronaves utilizadas durante o GP do Brasil de Fórmula 1 eram piratas. Existem hoje empresas operando nos aeroportos com CNPJ e sem vínculo com a Anac. Eles oferecem serviço clandestino de táxi-aéreo em aeronaves privadas, sem nenhum controle, e até emitem nota fiscal.  A ousadia é tão grande que já existem piratas participando de licitações públicas. Na prática, a Anac é extremamente severa com os táxis-aéreos regulares e não faz nada para proibir os táxis-aéreos clandestinos. Mortes têm acontecido por isso. Teve um helicóptero que caiu no Rio sem deixar sobreviventes e o piloto, sem habilitação, estava usando o código de outro piloto. Houve o caso de um médico com uma UTI clandestina que levou à morte de uma criança, que precisava estar “entubada”, por falta de equipamentos.

O que a Anac tem feito para coibir esse tipo de prática?

Depois de muita pressão, conseguimos criar no ano passado uma nova gerencia dentro da anac, chamada Gerencia Geral de Ação Fiscal, ou GGAF. O problema, segundo temos constatado, é que a legislação não oferece à agência condições para dar, por exemplo, um flagrante na empresa pirata, ela só pode agir contra os táxis-aéreos regulares. Resultado: tivemos mais 140 aeronaves suspensas nos últimos dois anos e apenas um piloto preso por transporte aéreo clandestino.

E quem resolve esse impasse?

Quem legisla é a agência, tanto que ela abriu a GGAF. A proposta seria trabalhar em conjunto com Policia Federal, Receita Federal, Anac e ABIN. Essa é a proposta da Anac, mas cada vez mais empresas piratas surgem. O empresário regularizado se cansa de perder clientes e parte também para a clandestinidade. Ele passa seu avião para a categoria privada, abre uma agência de turismo e vai transportar gente sem pagar imposto ou sofrer com burocracias. É claro que há gente trabalhando dentro da Anac, há avanços. A associação é sempre muito bem recebida, mas precisamos de uma atuação mais contundente, na base da pirâmide.

"Se a Anac conseguisse paralisar pelo menos 10 aeronaves clandestinas, já daria um ânimo para os táxis-aéreos regulares"

O mercado de táxis-aéreos tem demanda?

O taxi-aéreo é um termômetro muito preciso da economia do país. E existe uma demanda. Mas, de novo, há problemas com as autoridades. Na Copa das Confederações, teoricamente, teríamos muito trabalho. Mas o Decea criou os slots nas principais cidades brasileiras, alguns com antecedência de 25 horas, e inviabilizou os voos dos táxis-aéreos regulares. Em compensação, os clandestinos voaram sem parar em aeroportos não controlados pela Infraero. Então, sim, existe demanda crescente, para peças de automóveis e transporte de valores e passageiros durante grandes eventos. Mas o empresário tem dúvidas se deve se endividar. Fui procurado por representantes das transportadoras de valores e ouvi deles que empresas multinacionais estão preocupadas com a inoperância que ocorre sequencialmente aqui em São Paulo, onde empresas têm sido suspensas e ficam paradas ou fecham.

Como é o treinamento dos pilotos de táxis-aéreos?

No Brasil não existe cultura do centro de treinamento. Lá fora, o camarada que saiu do zero entra em uma escola e se forma apto a pilotar um Boeing ou um Airbus. Aqui, quem qualifica o piloto é o taxi-aéreo, onde ele faz hora antes de ingressar na linha aérea ou na aviação executiva. E o que acontece, com o aumento da demanda, é que as empresas formam pilotos e, quando eles estão prontos, deixam a companhia. A gente admitia o piloto e ele ficava 6 a 7 meses operando como copiloto antes de assumir o comando de aeronaves menores. Em um ano, eu tinha pronto um comandante, que já havia passado por todas as situações climáticas. Nesse momento, ele agradecia e ia para Gol ou para a Azul. Assim, por incrível que pareça, para voar em um táxi-aéreo hoje, o empresário prefere um piloto que não tenha inglês fluente.

É assim mesmo?

O custo do treinamento subiu muito. Então, você quer um piloto que não fale inglês, com formação mais rasa, suficiente para o nível de sua aeronave, sem perspectiva de subir. O problema é que os táxis-aéreos perdem com isso ao não dispor de profissionais com máxima qualificação. E a linha aérea começa a perder também os pilotos com experiência em táxis-aéreos pequenos, bastante rica.

Qual é o preço hoje para fretar um avião?

Em empresa séria, num turbo-hélice King Air, por exemplo, você paga 13 reais o km voado, ida e volta. Em jatos de peque porte, o valor chega a 17 reais o km, caso de um Phenom ou um CJ. O Learjet 35 seria na faixa de 18, 19 reais. De São Paulo a Goiânia são 900 km mais ou menos, o equivalente a 1.800 km ida e volta. Multiplicando por 13, para um turbo-hélice leve, temos 23.400 reais.

E quanto aos problemas no solo, com os contratos de hangar?

É outra briga. O táxi-aéreo opera em mais de 3.500 pistas do Brasil enquanto as linhas aéreas voam para poucos municípios. Ele faz aquilo que o governo não faz. E se o governo quer aumentar sua arrecadação nos grandes aeroportos, antes, precisaria autorizar a exploração comercial nos aeroportos privados. Caso contrário, inviabiliza a aviação leve. É o que está havendo com o chamado ato 3139, que permite a licitação de hangares. Por outro lado, o certificado é uma concessão do governo para uma empresa explorar o segmento de taxi-aéreo e de manutenção. É um serviço público. E para você ter essa concessão, é preciso ter uma aérea em um sítio aeroportuário, como fazer? Há também uma briga jurídica porque você não pode licitar essas áreas, são contratos renováveis, baseados na capacidade de cada empresa. O problema é que a maioria dos contratos vence em 2015 e muitos empresários não sabem o que vai acontecer.

Qual seria uma solução imediata?

Primeiro paralisar esse modelo de suspender empresas. Elas precisariam antes ser advertidas por escrito e só suspender reincidentes. Precisaria também haver mecanismos para que o gestor da Anac consiga fazer com que o servidor da agência trabalhe no ritmo que a iniciativa privada precisa. Para protocolar um documento, você tem que ter um prazo para pegar a resposta sem ficar com o documento pendente por um ano. No período militar também havia problemas, só que o atendente era de aviação, pois pertencia à FAB. No caso da Anac é diferente. O pessoal tem uma boa formação acadêmica, estudam bastante para passar no concurso, mas nem sempre são de aviação.

E o que os empresários do setor de taxi-aéreo poderiam fazer? Sabemos que muitos deles nem sempre tem uma conduta adequada, por mais que haja problemas.

É verdade. Existem muitos empresários do nosso setor com culpa no cartório. Eles refletem a sociedade brasileira. Tem gente que presta e gente que não presta. Por isso defendo a penalidade para os que não têm comprometimento. Mas defendo também que os clandestinos sejam combatidos com o mesmo rigor. Se a Anac conseguisse paralisar pelo menos 10 aeronaves clandestinas, já daria um ânimo para as pessoas. O problema é que a Anac perdeu credibilidade em relação ao transporte aéreo pirata. Propusemos uma medida simples, mas que não passou: o avião deveria ser obrigado a ter a marca taxi-aéreo próxima à porta de embarque dos passageiros em local visível. Também pedimos à Anac que obrigasse a colocação de identificação dizendo “proibido o voo de taxi-aéreo” em aeronaves privadas.

O passageiro que freta o pirata é conivente ou vítima?

Em muitos casos ele é conivente, mas desinformado, porque não tem dimensão do risco que está correndo. Mas existem aqueles que não sabem também. De novo, restringir o táxi-aéreo regular com burocracia em nome da segurança está abrindo caminho para o clandestino que é inseguro.

Por Giuliano Agmont
Publicado em 09/08/2013, às 00h00 - Atualizado em 10/08/2013, às 00h36


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