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Operações restritas

Três aeroportos que exigem perícia e muito sangue frio dos pilotos envolvidos nos pousos e decolagens



Em Lukla, no Nepal, os aviões decolam “morro abaixo”: pista com gradiente acentuado

Chegar a polos turísticos em países de primeiro mundo, com aeroportos ricos em infraestrutura, bons terminais, áreas de manobra espaçosas, sistema de tráfego aéreo bem servido por auxílios à navegação, além de controle radar e torre eficientes, costuma ser uma missão confortável para pilotos de linha aérea. Mas, se o objetivo for pousar em determinados aeroportos que padecem de melhores condições para atender ao fluxo de voos e de passageiros, na maioria das vezes pela geografia acidentada, que impede a construção de um complexo totalmente livre de obstáculos, a situação se inverte. Alguns até comportam aeronaves maiores, só que a operação diferenciada requer bastante atenção dos pilotos envolvidos, com observância rigorosa dos procedimentos e margens de segurança.

Três aeroportos em particular apresentam tais condições. São pistas que exercem não só sobre pilotos e entusiastas da aviação como também sobre os próprios passageiros um fascínio especial, já que mesclam o sentimento de deslumbre pela paisagem exuberante com a adrenalina nos momentos finais da aproximação. Sabe-se, inconscientemente, que qualquer erro do piloto ou uma falha técnica no momento mais crucial do pouso pode ser crítico.


Durante a descida para Funchal, os voos interceptam uma final balizada por VOR e seguem visual para pouso

Sem escape

Um dos exemplos mais emblemáticos na questão da geografia acidentada é o Aeroporto Tenzing-Hillary (IATA: LUA, ICAO: VNLK), onde a operação de uma aeronave de passageiros parece impossível ou digna de um bom filme de aventura. Localizado na pequena cidade de Lukla, em Khumbu, distrito de Solukhumb, ele atende prioritariamente aos turistas que desejam chegar ao Monte Evereste, a formação rochosa mais alta existente na geografia do globo terrestre, com elevação de 8.848 m, equivalentes a 29.017 pés. O nome do aeroporto é uma homenagem aos primeiros alpinistas que atingiram o cume da montanha em 29 de maio de 1953.

A pista (06/24) está localizada ao leste do Nepal e mostra-se uma das mais perigosas e desafiadoras para os pilotos que lá operam. Tem apenas 460 m de comprimento por 20 m de largura com gradiente de 12%, ou seja, 10% a mais do que o limite operacional da maioria das aeronaves comerciais. Como resultado, os poucos aviões homologados devem pousar no sentido de morro acima (cabeceira 06) e decolar ladeira abaixo (cabeceira 24). Outro desafio é a alta elevação, nada menos que 2.800 m, equivalentes a 9.100 pés acima do nível médio do mar, o que também traz limitações operacionais de performance. No entorno, escarpas se projetam ao norte, no que seria a área para uma possível arremetida, e ao sul um precipício de 610 m torna proibitiva a manobra de rejeição de decolagem.

Poucos pilotos aventureiros se candidatam ao emprego. Lá só operam helicópteros e aviões projetados especialmente para decolar e pousar curto, os chamados STOL, de “short-takeoff-and-landing”: são os de Havilland Canada DHC-6 Twin Otter e os Dornier Do 228. Não há espaço para erros. O vento cortante na área do aeroporto é desafiador, assim como a chuva, que diminui a aderência dos pneus na hora do pouso, além de prejudicar a visibilidade durante a aproximação. “Há épocas do ano em que a camada de nuvens impede a operação por dias e os turistas são obrigados a esperar a melhora do tempo nos hotéis da região”, revela Sam Chui, fotógrafo especializado em aviação, que esteve em Lukla para conferir de perto a operação especial.

Quatro linhas aéreas operam uma dúzia de voos entre Lukla e Kathmandu durante o dia, com tempo bom, entre 06h30 e 16h00. Não há viabilidade para a operação noturna e inexistem auxílios para voos por instrumentos. O único serviço disponível é o Aerodrome Flight Information Service (AFIS), cujo operador de rádio apenas confirma aos pilotos as condições meteorológicas presentes. O pátio comporta até quatro aviões de pequeno porte e um helicóptero. “Infelizmente, Lukla já registrou pelo menos quatro acidentes graves, apesar de toda precaução dos aviadores envolvidos”, lembra Chui. Nos últimos nove anos, foram quatro registros significativos: em 30 de junho de 2005, um Dornier Do 228 da Gorkha Airlines saiu da pista durante o pouso, causando ferimentos leves a nove passageiros e três tripulantes; em 8 de outubro de 2008, um DHC-6 Twin Otter da Yeti Airlines se acidentou no final de aproximação e pegou fogo, causando a morte de 18 ocupantes, sendo que apenas o comandante sobreviveu; no dia 25 de agosto de 2010, um Dornier Do 228 da Agni Air colidiu com uma montanha quando retornava a Kathmandu depois que a tripulação desistiu de pousar em Lukla pelo mau tempo, resultando na morte de 11 passageiros e três tripulantes; em outubro de 2010, um Dornier Do 228 da Sita Air perdeu o freio durante o pouso e colidiu com o muro no final da pista, porém, sem causar ferimentos graves aos ocupantes da aeronave.

Perícia à prova

O relevo acidentado de Paro exige cuidados na aproximação visual para a pista 15/33

Não muito longe de Lukla, outro aeroporto chama a atenção pela operação diferenciada, além da paisagem exuberante no entorno. Trata-se do Aeroporto Internacional Paro (IATA: PBH, ICAO: VQPR), este localizado próximo ao vale do rio Paro Chhu, com elevação de 2.200 m (7.300 pés). Pertence ao Butão, país inserido no sul da Ásia, fazendo fronteira com a China e a Índia, não muito longe do Nepal, com terras no baixo Himalaia. A capital é Thimphu.

A pista de Paro (15/33) tem apenas 1.985 m de comprimento por 30 m de largura e comporta a operação de aeronaves de médio porte, porém, com necessidade de treinamento especial para os pilotos. Isso porque a área de aproximação está cercada por altas elevações com picos chegando a 18.000 pés (5.500 m) e a descida só pode ser executada em condições visuais para a cabeceira 15, ou por meio de um único procedimento por instrumentos (Cloud Brake Procedure), esse para a cabeceira 33, que tem início a 4.875 m (16.000 pés), com bloqueio do VOR Paro a 4.115 m (13.500 pés), afastamento por 8 km (5 milhas) na radial 328 e descida a 3.655 m (12.500 pés). De qualquer maneira, no último trecho, o piloto deve obter contato visual com o aeroporto para aterrissar. A arremetida, no caso da cabeceira 33, é com curva pela direita, com “bank” mínimo de 25 graus e velocidade máxima de 295 km/h (160 nós) para se evitar a área perigosa de relevo acidentado.

Para se chegar lá só existe uma opção: a Druk Air, empresa aérea oficial de bandeira butanesa, que opera aeronaves Airbus A319. Existem alguns vídeos gravados no cockpit durante o pouso disponíveis via YouTube. No link https://youtu.be/7Xf1JWIbgpE, acompanha-se a aproximação completa. Vale observar o morro e a área residencial à direita da aeronave, segundos antes do toque dos pneus na pista 15. “Paro é realmente muito interessante e não resisti em conferir inloco todos os detalhes operacionais”, comenta o piloto Ales Hloucal, que também é spotter nas horas vagas e nos oferece uma belíssima imagem desse complexo aeroportuário.


A deslumbrante paisagem do aeroporto de Paro fascina pilotos e entusiastas

Além-mar

Certamente, um dos aeroportos mais conhecidos entre pilotos e entusiastas é o de Funchal (IATA: FNC, ICAO: LPFU), localizado na Ilha da Madeira, em Portugal, considerada a pérola do Atlântico em função do verde predominante de sua mata nativa. A própria Airutopia (Aviation Data Corporation), empresa norte-americana especializada na produção de filmagens em aeroportos e shows aéreos, dedicou um DVD ao aeroporto que está erguido na faixa litorânea da ilha, porém, circundado por grandes escarpas de sudoeste a nordeste. A paisagem é de tirar o fôlego e não é por menos que Madeira é um dos destinos mais procurados por turistas europeus. Por outro lado, a geografia acidentada tornou inviável o desenvolvimento de qualquer tipo de procedimento de aproximação por instrumentos para a pista de Funchal, que tem orientação 05/23.

Durante a descida, os voos executam um procedimento do tipo STAR (Standard Terminal Arrival Route) e posteriormente interceptam uma final balizada pelo VOR de Funchal a partir do qual seguem visualmente para pouso. No caso da perna do vento para a cabeceira 05, o ponto de aproximação perdida está localizado a apenas 5,8 km (3,6 milhas) após o bloqueio do VOR, com afastamento ideal pela radial 212. Isso porque o piloto deve manter bom contato visual com o terreno para girar base pela direita e interceptar a final curta a 138 m (450 pés), deixando os morros da ilha à esquerda. “Não é qualquer tripulante que opera em Funchal. É necessária uma certificação especial, além de treino em simulador”, explica o português Andre Brandão, comandante de Boeing 767 na companhia Euro Atlantic. Ele lembra que em certas ocasiões o vento de través pela esquerda torna a aproximação para a cabeceira 05 ainda mais restrita em função de turbulência orográfica com fortes rajadas e as arremetidas acabam acontecendo com maior frequência. “O vento informado pela Torre não é só o da cabeceira, mas o de diversos quadrantes da aproximação, no intuito de se aumentar os níveis de segurança de voo”, destaca Brandão.

O aeroporto é administrado pela Anam (Aeroportos e Navegação Aérea da Madeira S.A.), que mantém um terminal de passageiros adequado para o movimento, porém, não equipado com fingers. O maior avião que opera regularmente em Funchal é o Airbus A330 da TAP Air Portugal, na ligação de Lisboa a Caracas via Madeira, lembrando que existe atualmente uma grande comunidade imigrante madeirense na Venezuela. A pista comporta aeronaves Boeing 747, que são extremamente raras naquele aeroporto. São 2.481 m de comprimento por 45 m de largura.

No passado, já foi bem mais curta, com apenas 1.800 m.No ano 2000, a construtora brasileira Andrade Gutierrez venceu a concorrência para ampliar a pista do aeroporto português de um modo bastante inusitado. Como no leste da ilha não havia meios de se estender as áreas de manobras em função do relevo acidentado e do mar, os engenheiros optaram por erguer um mega viaduto de modo a acomodar a ampliação da pista. Para suportar a plataforma, os construtores ergueram nada menos do que 180 colunas de 70 m de altura. A megaconstrução foi entregue em 2002 e ganhou dois anos mais tarde o prêmio Outstanding Structure Award pela Iabse (International Association of Bridge and Structural Engineering), considerado o “Oscar” da engenharia civil.

Por Robert Zwerdling
Publicado em 01/09/2014, às 00h00


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