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Mãe, esposa e comandante

Embarcamos no voo TAM JJ 3496 para contar a história de uma das primeiras mulheres a ocupar o assento esquerdo do cockpit de um jato comercial, a aviadora Jaqueline Ortolan


O sol ainda não havia dado as caras quando nos encontramos na sala de embarque do portão 1B do Aeroporto de Guarulhos, em São Paulo. Seguimos de van até a aeronave. A comandante Jaqueline Ortolan - que alterou sua escala para poder nos receber no JJ3496 (GRU-FOR) - lança no computador de bordo informações geradas pelo Despachante Operacional de Voo (DOV), naquele processo de, entre outras coisas, equacionar segurança e performance. Este A-320 tem 175 lugares (90 passageiros se apresentaram para o embarque).

O céu tende a ser de um azul impecável durante quase toda a rota. O corpo forte do gaúcho louro Estevão Matzenbacher sobra no assento de copiloto. Decolamos pontualmente às 6h05, momento em que o desembarque internacional do saturado terminal paulista começa a entupir-se de pessoas tresnoitadas e atônitas diante de filas enoveladas, espaços restritos e esteiras ineficientes. "E a Copa?", perguntam-se.

Estevão e Lucas Telles (copiloto em treinamento) estão na TAM há algum tempo, mas nunca haviam voado juntos. A prerrogativa de pilotos quase nunca repetirem jornadas com os mesmos colegas de cabine não é o cúmulo da falta de coincidência, não. É premeditado. "Voar com equipes diferentes é recomendável", diz Jaqueline. "Tudo tem que funcionar bem, não importa quem esteja conosco ou qual relacionamento você tem com a pessoa."

Estevão e Lucas tampouco haviam sido comandados por uma mulher. Não parecem constrangidos ou empolgados. "Normal, ora", dizem. Hoje é quarta. Jaqueline esteve de folga ontem e anteontem. Voou até Maceió na sexta passada e trabalhou sábado e domingo no CCOA (Centro de Controle de Operações Aéreas), onde ela e outros pilotos-coordenadores se revezam no suporte aos tripulantes da TAM em atividade pelos céus do mundo.

Os nomes dos copilotos escalados para trabalhar com ela ao longo de outubro não a remetem aos respectivos rostos. "Deixa eu ver. Não. Nunca voei com eles." As comissárias Giovana Coradini, Taciane Klein, Marlete Oliveira e Inez Brito também nunca se viram. "Ah, já estive com a comandante, sim. Foi uns dois anos atrás, acho", Giovana se corrige, respeitosa.

Jaqueline se prepara para o próximo desafio profissional: comandar um wide-body

Virginiana sem vertigens
Nivelamos. Após o término do serviço de bordo, Jaqueline vem até a primeira fila. Nossa conversa é fragmentária. A propósito, penso, a cronologia do voo não tem como ser a mesma desta narração, que, para existir, contou também com um bate-papo posterior e rápido no Hangar 7 de Congonhas, sob o ruído dispensável de turbinas, e respostas por e-mail. Aos 43 anos completados em agosto, Jaqueline é (e se considera) virginiana.

"Metódica e organizada, sigo uma rotina nas atividades cotidianas. Mas não aquela rotina de fazer tudo sempre igual e, sim, de fazer as coisas sempre corretas. Se tenho de estudar, estudo tudo até o rodapé. Se vou limpar um armário, tenho que limpar tudo, mexer em tudo, tirar o pó de cada cantinho. Se vou cozinhar, tem que ser refeição completa, com entrada e sobremesa, entende? Nada pela metade me deixa em paz."

Nasceu em Araçatuba (SP). Casou-se há 13 anos com o veterinário Eduardo Arrabal, paulista de Porto Feliz, descendente de espanhóis, com quem teve o casal de gêmeos Frederico e Raissa, que completam 6 anos em novembro. Eduardo possui duas fábricas em Itu (SP), uma de aquários marinhos e uma de portas e janelas de PVC.

O amparo da "babá-anjo" Rosângela, que segurou a onda com os bebês nos primeiros dois anos, facilitou o retorno da comandante ao trabalho depois da licença- maternidade. As crianças hoje passam a maior parte do tempo com a babá Lívia, que elas chamam de Tia Lívia. Jaqueline ainda não era mãe, mas já estava na TAM (ingressou na empresa em 1996) quando se formou em Publicidade e Propaganda na Universidade de Sorocaba (Uniso).

De uns anos para cá, o diploma de curso superior, assim como o pleno domínio do inglês, não podem mais ser desconsiderados pelos pilotos dispostos a ir longe. Ela pretende cursar um MBA na área de gestão de pessoas. "Hoje precisamos ter uma visão macro das operações aéreas: das escalações das aeronaves para determinada rota até a finalização do dia. É preciso saber gerenciar todas as variáveis, minimizando seus efeitos." Energética, ela confessa - com gesticulações teatrais - que não suporta sossego por muito tempo. Nas férias foi para um resort. "No quarto dia já queria ir embora. Era devagar demais. Sou do tipo que puxa conversa com as pessoas. Gosto de ação." Ninguém da família trabalha ou trabalhou em aviação, mas ela tem de voar para poder ver os três irmãos: Nelma, a mais velha, mora em Campo Grande (MS); Jaime, o segundo, e Glauco, o caçula, estão a 550 km de São Paulo.

Considerações sobre o desejo
Com ela de volta ao posto, puxo assunto com a jovem paranaense Giovana Coradini. Falamos dos tempos elitistas da aviação civil, da massificação das viagens aéreas, da ascensão das classes C e D, do processo de redução da complexidade do atendimento de bordo - do emprego curde materiais descartáveis à distribuição de barras de cereais. "Apesar dessas mudanças todas, nosso trabalho continua importante", afirma a comissária.

No desembarque em Fortaleza, um senhor resolve dar à mulher-comandante os parabéns sinceros, mas não livres de ambiguidades. "Já me acostumei a contornar as manifestações dos passageiros. Uma vez me perguntaram: 'A senhora sabe o que muçulmanos e judeus têm em comum?' Não, não sei. 'Não respeitam mulher.' Ah, bom. Outro, me vendo de quepe, falou: 'Ainda bem que não tem que fazer baliza lá em cima, né?'. Pois é. E tem a mulher que, quando soube que eu ia pilotar, disse: 'Ai, vou tomar meu Lexotan, então.' Medicação boa essa. Eu tomo também, brinquei."

A comandante jaqueline ortolan já ouviu de tudo de seus passageiros, desde piadas infames, como "ainda bem que não tem que fazer baliza lá em cima", até elogios emocionados

Jaqueline se recorda com emoção da passageira velhinha que a valorizou por uma perspectiva histórica, lembrando-a dos tempos em que as mulheres não tinham "voz ativa no mercado de trabalho". Como uma das primeiras mulheres a ingressar na carreira de piloto de companhia aérea no Brasil, a trajetória da nossa comandante revela uma atitude desbravadora cujo alcance social ela própria talvez ainda não tenha plena consciência.

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Aos 19 anos, quando saiu de Araçatuba para São Paulo, a aviação não estava concretamente em seus planos, mas o fato de ter arranjado logo um emprego no setor de reservas da Varig não é obra do acaso, tampouco a "promoção" a comissária de bordo, que a levou a abandonar o curso de Tradutor-Intérprete. Enturmar-se justamente com colegas frequentadores do Aeroclube de Sorocaba seria mais que sintomático.

Imantada pela febre de voar, e tendo ultrapassado as etapas de formação como piloto privado e piloto comercial, ela decidiu ousar: sair da Varig para ir onde os aviões estivessem mais disponíveis para que ela somasse horas de voo e aprendesse mais. "Depois que tirei PP e PC, conheci um piloto da Heringer Táxi Aéreo que abriu o caminho para eu ir para Imperatriz, no Maranhão, onde teria mais condições de pegar experiência em IFR e multimotores."

Na época, para entrar em uma companhia aérea de grande porte eram necessárias 1.500 horas de voo. "Ainda não tinha certeza se queria exercer a profissão de piloto. Até porque, sendo mulher, as coisas me pareciam ainda mais difíceis. Mas topei ir. Minhas amigas comissárias da Varig acharam uma maluquice. A gente tinha estabilidade, tinha status." Começava a acreditar que o plano de viver da aviação podia dar certo. Só não sabia como.

"Quando buscamos o que queremos, as coisas acabam acontecendo. Visitando um amigo em Imperatriz, durante uma escala de voo, conheci a Andréia [também comandante da TAM, hoje], que já estava lá, voando, e me veio a ideia de pedir a mesma chance. Não tive dúvidas e, de volta a São Paulo, liguei para um amigo, que imediatamente falou com o dono do táxi aéreo, que autorizou a minha ida."

Instalou-se no Aeroclube de Imperatriz. Pagava a moradia dando aulas. Compartilhava o quarto com Andréia, a quem considera como irmã. "A gente era dura. Dividíamos tudo, até o xampu e o condicionador. Eu tinha esse mesmo cabelão, então você queria o quê? Já a alimentação e outras despesas eu cobria com o dinheiro do Escort que vendi e apliquei. Comi um carro, veja só."

No Maranhão, voou em um Seneca cerca de 300 horas e arranjou trabalho para rotas entre São Luís e Brasília. "Havia pouquíssimas mulheres trabalhando nisso, na época, uma ou duas, talvez. E eu me perguntava: será que vou conseguir mesmo? O fato é que o convívio com a Andréia em Imperatriz me deu muita confiança."

Assim no céu como na água
"Foi a senhora que fez o pouso?", a passageira do voo JJ3498 pergunta ao desembarcarmos em Guarulhos na volta. "Foi." "Ah, então eu já voei com a senhora uma vez. Porque o pouso foi igualzinho". "Bom ou ruim?", a comandante pergunta. A mulher tremula a mão direita em sinal de "mais ou menos". "Tem muito vento hoje". E prossegue comigo: "Vinte anos atrás, os donos de empresa de táxi aéreo se recusavam a pagar quartos de hotel separados para piloto e copiloto. Para uma mulher, era um problema".

No comando de um Airbus A320, Jaqueline confessa adorar a rotina de piloto. ela gosta de estar cada dia em um lugar

Do Maranhão para São Paulo. Jovem, ela ingressa na Piracicaba Táxi Aéreo. "Os comandantes Omir e Renato me ensinaram tudo com toda a paciência e até hoje eu os admiro demais. Eles me deram o tão difícil primeiro emprego, que, no caso, me propiciou a chance de deslanchar na carreira. Foram pessoas especiais. Hoje, procuro ajudar os iniciantes assim como fui ajudada por eles."

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Na TAM, galgou como copiloto todos os degraus que haviam nos anos 1990: Caravan, Fokker 50, Fokker 100, A-319/320 e A-330. A partir daí, em vez de começar tudo de novo, de baixo, ela foi comandar o A320, pois os outros aviões abaixo deste não faziam mais parte da frota. No primeiro dia com o Caravan conheceu Patrícia (hoje comandante), com quem viajou para Dallas para fazer o ground school do Fokker 100.

Tornaram-se grandes amigas. Jaqueline tem um carinho especial também por Claudine, primeira mulher comandante na TAM. Na primeira vez que dominou sozinha o A320 sentiu-se tão incrédula quanto fascinada. "Passei essa chave de voo inteira nessa mistura de sentimentos. Cada pouso era uma vitória. Foi demais." Agora almeja os widebodies (A330, 767 e 777). "Estou ansiosa para poder ter mais essa experiência."

Fora dos aviões, não se considera "comandante". "O que acontece, às vezes, é que, como nossa atividade nos faz tomar decisões minuto a minuto, temos a tendência de achar que podemos decidir tudo também no ambiente familiar. É claro que isso incomoda e, às vezes, causa desconforto, mas nada que não se resolva com amor e paciência por parte de todos."

As aeronaves são máquinas racionais, movidas por causas e efeitos. "No dia a dia dos voos, com todo o treinamento que temos, consigo perfeitamente bem tomar decisões baseadas somente na razão." Em terra, é vista como uma pessoa forte e segura, ideal para ouvir confidências e dar conselhos. "Mas em algumas ocasiões, especialmente se estão envolvidos meu marido e meus filhos, tendo a deixar a razão de lado e agir muito mais com o coração. Família é muito importante."

Sua vida social é comandada pela agenda de trabalho. "Por outro lado, adoro estar em casa no meio da semana; ou saber que estarei em um pernoite dia tal em tal lugar, quando terei um tempo só meu para ler [está lendo A alma imoral, de Nilton Bonder], dormir, assistir TV, passear no shopping, correr. Sem culpa, sem horário; adoro estar hoje aqui, amanhã em outro estado ou país. O que conta é fazer o que realmente te deixa feliz."

Um hobby? Mergulhar. Antes de nascerem os gêmeos, esbaldava-se abaixo no nível do mar com um entusiasmo semelhante àquele que a leva às alturas. Hawaii, Koh Samui, Phi Phi Island, Key West... No Brasil, explorou a fundo Fernando de Noronha, assim como as profundezas de outros paraísos nacionais. Dominando o ar e a água, a terra se torna ainda mais satisfatória, e o fogo transparece na energia vital que a impulsiona pela amplidão.

Sérgio Vilas-Boas | Fotos Rodrigo Cozzato
Publicado em 07/11/2011, às 15h14 - Atualizado em 27/07/2013, às 18h45


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