Disponível com motor Jabiru e agora também com Rotax, o Quasar Lite impressiona pelas virtudes técnicas de seu projeto, que abusa de estruturas em material composto
A cidade de Franca está ensolarada. O lugar parece se beneficiar de sua pujante história. Ao longo do século XVIII, os bandeirantes seguiam rumo ao interior, em direção às terras de Goiás e Mato Grosso. Os caminhos se fundiam na "Estrada dos Goiases", que se tornava uma rota mercantil, cada dia mais intensa.
Os desbravadores portugueses levavam consigo tropas, sempre carentes de suprimentos e assessórios de montaria. Para atendê-los, artesãos da região, já na década de 1820, produziam arreios, sandálias, bainhas para facas e outros artigos de couro.
Esse fenômeno se somaria a outro, vindo de Minas Gerais. O término do ciclo do ouro, no final do mesmo século, traria pessoas em busca de terras para criação de gado. Décadas mais tarde, a agricultura cafeeira desenvolveria a região. Isso tudo atraiu imigrantes italianos e migrantes brasileiros, já pelo início do século XX. A indústria calçadista de Franca surgiria, em seguida, pela evolução natural desses fatores. E, nas últimas décadas, a cidade vem se tornando um polo industrial importante e tomando decisões acertadas que produziram ótima qualidade de vida.
E é lá que está instalada a indústria Aeroalcool Tecnologia Ltda. A empresa nasceu em 2001, com a finalidade de desenvolver tecnologia de uso de etanol em motores aeronáuticos a pistão. A intenção inicial era obter a certificação dos motores de aeronaves Piper Pawnee PA-25, para uso desse novo combustível. Também teve participação ativa junto à Neiva e ao antigo DAC (Departamento de Aviação Civil), para que as novas aeronaves Ipanema também pudessem ser aprovadas. Em 2004, o EMB 202-A já voava oficialmente com etanol.
A Aeroalcool foi fundada por dois engenheiros aeronáuticos, formados pela Escola de Engenharia de São Carlos da Universidade de São Paulo (EESC-USP). Omar José Junqueira Pugliesi, mestre em Engenharia na área de motores, e James Rojas Waterhouse, doutor em Engenharia na área de material composto, conheceram-se ainda estudantes. Recém-formados, passaram a trabalhar juntos no desenvolvimento de projetos de grandes modificações em aeronaves.
Ao longo dos anos, realizaram homologações diversas, reparos em material composto e instalação de sistemas FLIR de vigilância. Recentemente, decidiram voar mais alto. A empresa está desenvolvendo uma aeronave não tripulada, tipo vant, para ser usada na vigilância da Amazônia, em parceria com a AGX, que faz a eletrônica embarcada, e a Orbsat, desenvolvedora do radar de bordo. O protótipo está pronto e já voa em testes.
Com esse invejável portfólio, os dois sócios vêm se desafiando em outros projetos. Atentos ao crescimento do mercado de aviação geral, eles se deram conta de que cada vez mais pessoas necessitam viajar entre cidades médias, de forma rápida. Muitos escolhem a aeronave leve como solução. Procuram um veículo seguro, com custo acessível e manutenção simples.
Por isso, em 2006, tomaram a decisão de desenvolver um projeto diferenciado, de peso reduzido e alta eficiência aerodinâmica. Esperavam conceber uma aeronave que pudesse utilizar um motor pequeno, capaz de apresentar um resultado igual ou melhor do que o da concorrência.
Para isso, contavam com algumas vantagens competitivas, tais como sólida formação em engenharia, conexão com os maiores centros de pesquisa do Brasil e localização numa cidade com excelente infraestrutura, próxima dos centros econômicos do Sul e do Sudeste.
Em 2008, passaram a produzir o Quasar Lite, uma aeronave de projeto totalmente nacional. Atualmente, está sendo fabricada a unidade de número 44. Destas 10 foram vendidas para clientes nos Estados Unidos. A novidade do projeto é a oferta de uma versão com motor Rotax 912 ULS.
LAMINAÇÃO A QUENTE
Chego voando em Franca. Após o pouso, a primeira boa surpresa. O aeródromo, administrado pelo DAESP (Departamento Aeroviário do Estado de São Paulo), tem uma excelente infraestrutura para operação de aeronaves pequenas e médias. A pista, com 2.000 metros de comprimento, é calçada de asfalto, tem pátio amplo, conta com abastecimento de gasolina de aviação (Avgas), oferece aeroclube local e dispõe de um terminal de passageiros que está sendo ampliado. As instalações da Aeroalcool ocupam dois hangares e alguns galpões industriais atrás deles. Sou recebido pelo engenheiro Omar, que se mostra bastante animado com a visita. Começamos o tour pelo hangar principal onde estão sendo produzidas cinco unidades. Lá trabalham cerca de dez funcionários, homens e mulheres, todos jovens. Parecem saber o que se espera deles, uma vez que conversam pouco e se mantém concentrados em suas atividades. Mas, nos momentos em que a chuva ameaça, interrompem suas tarefas e se reúnem para reposicionar as aeronaves do pátio, sem um líder aparente. Passam a imagem de uma equipe bem preparada para trabalhos de rotina e situações extraordinárias.
QUASAR LITE GANHOU NOVA VERSÃO COM OFERTA DO MOTOR ROTAX 912 ULS
Seguimos para as instalações de produção da fuselagem. A empresa fabrica dois modelos, o Quasar Lite e o Quasar Fast. As diferenças se resumem, preponderantemente, às velocidades. Os modelos diferem em motorização, comprimento da asa (de mesmo perfil) e dimensões do leme. A seção central do Quasar é produzida totalmente em materiais compostos. Utilizam fôrmas que moldam as duas laterais da fuselagem, como as duas metades de um ovo de Páscoa. Cada fôrma acomoda as camadas de compósito, que serão fundidas por vácuo. Mais tarde, desenformadas, serão unidas por um processo de laminação. Nas bordas, onde as duas faces se encontram, é aplicada uma banda de material composto, parecida com uma fita adesiva. Em seguida, o conjunto vai para um forno de cura. Lá permanece a temperaturas acima de 80°C por várias horas. O material aplicado na junção reage quimicamente com as faces laterais, tornando o conjunto uma única peça. Essa técnica dispensa o uso de rebites e possibilita melhores formatos aerodinâmicos, com boa resistência mecânica e elasticidade. Além disso, o peso da seção central é reduzido. No Quasar Lite, ele é de apenas 39 kg.
A técnica de laminação a quente já é consolidada há anos e aplicada em várias aeronaves homologadas. É idêntica, por exemplo, à praticada pela empresa norte-americana Cirrus Aircraft. Com o conhecimento que detém em manuseio de material composto, a Aeroalcool vem também reparando asas de compósito danificadas, tanto de aeronaves Cirrus, como de outros modelos de pequeno porte. E, ao que parece, esse conhecimento aumenta a cada dia e tende a ir para o espaço, literalmente. A empresa também desenvolveu um recipiente para câmera (baffles) em material composto, a ser usado no satélite sino-brasileiro CBERS, a pedido do INPE (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais). Até agora, já entregou duas unidades.
REFINAMENTO AERODINÂMICO
Segundo o engenheiro Omar, projetar e produzir bem são apenas parte do desafio. A outra parte, não menos complexa, é registrar o que se faz e como se faz, para fins de rastreabilidade. Ele explica: "Para que o projeto do Quasar possa atender aos requisitos para certificação de LSA nos Estados Unidos e no Brasil, é necessário que os componentes tenham registros de quando e como foram produzidos. Se daqui a vários anos alguma bolha ou rachadura surgir no compósito, teremos condições de analisar o histórico de produção da peça e corrigir as falhas". De acordo com Omar, motor, aviônica, fios, parafusos, porcas e arruelas do Quasar vêm de fora. Todos os demais componentes são produzidos pela própria empresa. Ao ser questionado sobre rodas e freios, ele responde sorrindo que estes também são projeto Aeroalcool. Confeccionados de material composto, são únicos em projetos de aeronaves leves e visam, especialmente, a redução de peso.
COM FUSELAGEM EM COMPÓSITO E USO DE FIBRA DE CARBONO TANTO NA CAUDA QUANTO NO CANOPI, QUASAR LITE DISPUTA ESPAÇO NO MERCADO LSA
O projeto também prioriza o refinamento aerodinâmico. A empenagem conta com uma quilha que se prolonga verticalmente, logo abaixo do leme, dando a impressão de que dele ainda faz parte. Na verdade, o motivo é garantir a melhor estabilidade dinâmica em caso de turbulências ou na saída de um parafuso inadvertido. Falando nisso, o centro de gravidade (CG) foi calculado para um passeio curto, de 295 mm a 335 mm a partir do bordo de ataque da asa. Muito próximo do alinhamento dos tanques de combustível. Ou seja, independente do volume de gasolina, a posição do CG varia pouco e não altera o balanceamento da aeronave. O peso da bagagem, no entanto, poderia pôr todos os cálculos em xeque, não fosse a decisão de limitar o volume do bagageiro (atrás dos bancos).
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As asas são outro ponto importante do projeto. Construídas em alumínio, suas longarinas foram reforçadas com a sobreposição de placas a partir da raiz, que se reduzem em quantidade no caminho até as pontas. Os tanques são incorporados no bordo de ataque e vêm em três tamanhos: de 140, 94 ou 74 litros. Longarinas, perfis e chapas são todos ligados com rebites cravados, muito mais resistentes que os rebites pop. O engenheiro Omar esclarece que a opção de asas de alumínio se deu pela facilidade de reparos, caso venham a sofrer algum dano. Nem por isso voam mal, já que o perfil escolhido atende perfeitamente ao refinamento aerodinâmico que pretendiam.
VANTAGENS TÉCNICAS
Todas as explicações são oferecidas com muita empolgação. Nota-se no anfitrião um justificado orgulho pelo primor do projeto e de sua linha de produção. Mas, quando pergunto se o cliente consegue perceber todos esses detalhes, como valores do produto, o semblante o trai. Admite que explicar tudo isso ao propenso comprador não é tarefa fácil. Os fatores que motivam o cliente são ligeiramente defasados daqueles que embasaram o projeto. Segundo ele, o comprador de aeronaves leves esportivas no Brasil ainda detém pouco conhecimento aeronáutico e acaba vulnerável a fatores cosméticos e comerciais. Preocupa-se mais com o valor de revenda, a imagem de sua aeronave nos meios que frequenta ou outros aspectos secundários. Isso eleva o desafio de vender, pois a Aeroalcool e seus representantes precisam dispender esforços no sentido de esclarecer as vantagens técnicas do Quasar Lite.
Uma delas, inquestionável, é a eficiência aerodinâmica. O Quasar Lite pode ser equipado com dois modelos de motor. O mais comum sai de fábrica com o motor Jubiru 2200, de quatro cilindros e 85hp. A aeronave vazia pesa 270 kg e seu peso máximo de decolagem é 500 kg. Decola com cerca de 250 metros de corrida, sobe com razão aproximada de 700 pés por minuto e voa a 105 kt de Va. Já seu consumo em rota varia de 11 a 15 litros por hora. Para essa velocidade de cruzeiro, outros modelos da concorrência exigem motores de 100 hp, com consumo na casa dos 20 litros por hora. Se o piloto do Quasar-Jabiru se dispuser a esse consumo maior, vai obter cerca de 115 kt de Va.
O motor Jabiru ainda é pouco conhecido na aviação aerodesportiva, e os poucos debutantes deixaram passar uma imagem preocupante, já que superaqueciam em outros modelos de aeronaves. Novamente, o engenheiro Omar esclarece que isso não se deve a qualquer deficiência do motor, refrigerado a ar, mas ao desenho da carenagem. Garantir uma circulação de ar que ponha para fora o calor exige um estudo de engenharia meticuloso, que simplesmente não foi realizado em outros projetos. Ele garante que no Quasar Lite a temperatura está sempre na faixa de melhor aproveitamento de potência do avião. Voaremos primeiro a versão com o motor Jabiru, depois a com Rotax.
CANOPI ARTICULADO PARA CIMA E PARA FRENTE PODE PERMANECER ABERTO DURANTE O TÁXI
JABIRU E ROTAX
Decolo com o Quasar/Jabiru de Franca (SIMK - 3300 pés de altitude) e noto que, mesmo em subidas prolongadas, numa tarde de verão, com dois pilotos pesados a bordo, não houve superaquecimento. O voo nos dá condições de verificar algumas afirmações do projeto, como o refinamento aerodinâmico. Um ponto alto é a excelente razão de planeio. A 5.000 pés de altitude e distantes cerca de 2 milhas náuticas da cabeceira 05, retiramos toda a potência do motor e estabelecemos um planeio. Na vertical da cabeceira, a altitude ainda é 4.800 pés. Descrevemos a perna com o vento para a pista 23 e na base estamos a 4.300 pés. Ainda altos, optamos em continuar para a perna com o vento da pista oposta, chegando à base da 05 ainda a 3.900 pés. Por momentos, o climb indicava zero. Alongamos a perna com o vento e temos de glissar na reta final para um toque em 2/3 da pista.
Há clientes que se sentem melhor com o motor Rotax 912 ULS, de 100 hp, cuja utilização é novidade da Aeroalcool. Também voo esse modelo. Observo que as características básicas se mantêm. No entanto, a subida nas mesmas condições do voo com o Jabiru acontece com razão maior na versão com motor Rotax, perfazendo 1.000 pés por minuto. Segundo o comandante Karlen Bianchi, que realizou os dois voos conosco, nessa motorização o consumo se eleva para 19 litros por hora, que produz cerca de 110 kt de Va.
No sentido horário, rodas de compósito, nova carenagem para motor Rotax, asa com rebites cravados e reforço na fixação da longarina
LSA SPECIAL
A despeito das qualidades técnicas, sabemos que há outros fatores que interferem na escolha de uma aeronave pessoal. São levados em conta aspectos como boa aparência do projeto, asa baixa ou asa alta, modelo do manche, tipo de bagageiro, acesso ao posto de pilotagem. E a escolha, muitas vezes, depende da empatia que todo o projeto exerce sobre o cliente. Portanto, difícil de avaliar e quantificar. Cabe aqui lembrar alguns aspectos genéricos. Asas baixas desenvolvem melhor rendimento aerodinâmico, facilmente comprovado na simples observação das aeronaves de alta performance. Também facilitam a visão do céu e do prolongamento das trajetórias em curva, especialmente em pernas bases e curvas após a decolagem. Podem ser uma vantagem na hora de contratar serviços de hangaragem, porque normalmente os hangares abrigam um número maior de aviões de asa alta e podem aumentar sua capacidade, recebendo alguns de asa baixa.
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As questões ergonômicas também são susceptíveis a diferentes avaliações. Se por um lado a cabine é justa, para o tamanho certo do piloto, por outro, faz lembrar um cockpit de avião de caça, com o painel inclinado e recuado. O canopi, articulado para cima e para frente, permite o taxiamento na posição aberto. Quando fechado, não impede a ventilação, mas pode dificultar a visão em alguns ângulos, já que boa parte é coberta para se evitar o sol.
Hoje, o Quasar Lite detém a homologação da Anac na categoria ALE-E (Aeronave Leve Esportiva - Experimental) mas, tão logo a agência decida abrir registros para modelos ALE-S (Aeronave Leve Esportiva - Especial), o avião estará pronto, uma vez que já possui homologação de LSA-S (Light Sport Aircraft - Special) nos EUA. Se a Anac seguir as legislações europeia e norte-americana, poderá autorizar o uso do Quasar Lite para a formação básica de pilotos. Portanto, as escolas receberão um novo fôlego para continuar ensinando, com custos operacionais menores.
Outro ponto positivo é a literatura técnica. Os seus manuais de operação e manutenção são densos de informação e bem diagramados.
São também muito bem ilustrados. Para se ter ideia, o manual de manutenção tem mais de 480 folhas, com fotos em alta definição de partes e processos de manutenção preventiva. Da mesma forma, o POH (Pilot Operation Handbook) apresenta os seus capítulos com o mesmo padrão de organização das aeronaves homologadas. Com mais de 100 folhas, esclarece bem o avião em suas duas motorizações.
Definitivamente, o Quasar Lite veio para competir de igual para igual com modelos tradicionais no mercado. Conhecê-lo melhor pode ajudar na escolha correta de uma aeronave pessoal.
| Jorge Filipe Almeida Barros, De Franca | Fotos | Maurício Lanza
Publicado em 22/03/2013, às 08h43 - Atualizado em 27/07/2013, às 18h45
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