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Segurança de Voo

Alerta para a aviação geral

Tragédia que tirou as vidas do presidenciável Eduardo Campos e dos integrantes de sua equipe de campanha expõem descaso do Brasil com operadores de aeronaves leves




O acidente fatal que matou o político Eduardo Campos e os integrantes de sua comitiva de campanha presidencial a bordo de um Cessna Citation XLS+, em uma manhã fria e chuvosa de quarta-feira, deu uma visibilidade adicional e indesejada à maior feira de aviação executiva da América Latina, que acontecia naquele dia, em São Paulo. Como um jato novo poderia ter caído com um candidato ao cargo executivo mais alto do país às vésperas do início da propaganda política na TV? Era a pergunta que jornalistas dos mais diversos meios de comunicação faziam aos especialistas de aviação pelos corredores da Labace. Diante do impacto da tragédia, houve (e ainda há) um clamor por respostas. Mas elas só virão com o tempo, depois das investigações do Cenipa (Centro de Investigação e Prevenção de Acidentes Aeronáuticos). Por ora, o que se pode fazer é apenas refletir sobre questões gerais associadas ao acidente. Nesta entrevista concedida pelo comandante Miguel Angelo Rodeguero, especialistas em segurança de voo e membro da APPA (Associação Pilotos e Proprietários de Aeronaves), parece claro que o desastre, independentemente do relatório final dos militares, é mais um alerta para os problemas enfrentados pela aviação geral no Brasil.

  • Quais são as certezas sobre o voo que culminou com o acidente fatal envolvendo o PR-AFA? O que o Cenipa ainda precisa descobrir?
  • A única certeza é que o acidente ocorreu. Sobre o voo em si, sabemos que parece ter transcorrido sem qualquer incidente até a situação de arremetida. O Cenipa está trabalhando com os dados disponíveis e com as evidências coletadas. É prematuro afirmar alguma coisa além de hipóteses. Quando a investigação tem à disposição epamentos que permitem refazer o voo em computadores, como as “caixas pretas” (CVR e DFDR: cockpit voice recorder e ­digital flight data recorder, o primeiro grava vozes e ruídos enquanto o segundo registra os parâmetros do voo), a busca por respostas tende a ser menos complexa. Ainda assim, um investigador não confia apenas num dado, mas faz um cruzamento de tudo o que tem disponível em busca de respostas.
  • O que pode ter acontecido entre o início da arremetida e a queda do avião? E imediatamente após a queda? É possível elencar hipóteses com as quais o Cenipa está trabalhando?
  • Uma coisa é certa, a arremetida do procedimento Echo 1 para a pista 35 de Santos prevê que o avião faça curva à esquerda subindo para 4.000 pés e isso não aconteceu. Difícil entender por que o avião não subiu. Todos têm alguma hipótese: falha mecânica, colisão com urubu, perda de consciência situacional, compulsão ao pouso, mau tempo, uma somatória de tudo isso... A lista é grande, mas ninguém pode dizer que tenha sido isso ou aquilo. Afirmar qualquer coisa antes do resultado da investigação é, no mínimo, leviano. Cenas rápidas recuperadas de uma câmera alguns dias depois do acidente mostram o avião caindo praticamente na vertical, o que traz mais indícios do que aconteceu. Chegou-se a levantar a hipótese de abertura de um reversor em voo (como no acidente do Fokker 100, no Jabaquara, em 1996). Muito pouco provável, a investigação dos motores poderá demonstrar que os reversores estavam em seus lugares. Já o fato de que, semanas antes, um voo desse avião havia sido cancelado por falha da ignição nada tem a ver com o acidente. Ignição é usada para dar partida no motor. Imagine seu carro sem bateria, não aciona o motor. Substituída a bateria, resolvido o problema. Após a queda, apesar das informações desencontradas publicadas na internet, os órgãos de controle já sabiam imediatamente qual aeronave havia se acidentado e, com um pouco mais de tempo, haviam identificado positivamente os passageiros. Em voos comerciais a lista de passageiros é documento obrigatório. Isso não ocorre em voos da aviação geral. Teve quem insinuasse que alguém, deliberadamente, poderia ter atrasado o início dos trabalhos de resgate/rescaldo para que evidências pudessem ser alteradas. É muita teoria da conspiração sobre um acidente. Também se falou da presença de drones (aviões não tripulados) na região. Realmente havia informação sobre isso, mas não exatamente no local voado pelo avião acidentado. Entretanto, essa possibilidade não deve ser descartada liminarmente. Por sua vez, o Cenipa realiza a investigação sem partir de uma causa. Todas são analisadas, inclusive os eventuais drones. Partir de uma causa e querer prová-la na investigação é um erro básico que o Cenipa não comete.

Não há indícios de fumaça na filmagem da aeronave caindo

  • Alguns afirmaram ter visto fogo na turbina durante a queda. Fala-se também em perda de consciência situacional do piloto. Essas situações poderiam ter provocado o acidente?
  • Muito pouco provável o fogo na turbina antes do acidente. A filmagem da aeronave caindo, embora não muito nítida, parece não mostrar indícios de fumaça. É comum em área com umidade bastante alta (como a de Santos naquele dia) a passagem do avião provocar imediata condensação do vapor de água deixando uma esteira branca (o nome dessa esteira é trilha de condensação). Essa trilha aparece bastante em voos altos, mas está presente a baixa altura, em dias muito úmidos. Parece fumaça, mas é vapor de água. Quanto à perda de consciência situacional do piloto, não podemos descartar. Existem várias definições para isso: consciência situacional é estar ciente do que aconteceu, do que está acontecendo e do que acontecerá no momento seguinte; é mantida quando tudo aquilo que você espera que aconteça, acontece exatamente da forma que você esperava... Pois bem, então como ocorre a perda dessa consciência? Às vezes, durante o voo, principalmente à noite ou dentro de nuvens, momentaneamente, o piloto deixa de perceber a exata posição de seu corpo e, por consequência, do avião, em relação tanto ao solo quanto ao horizonte. Isso pode fazer com que as reações sejam influenciadas por essa perda momentânea e o piloto acabe corrigindo algo que nem estava errado, mas parecia estar, ou corrigindo de forma equivocada algo que precisava ser corrigido. Pilotos têm treinamento para evitar essa situação de perda da consciência situacional: procedimentos padronizados, ambos trabalhando em conjunto na cabine (um voa, o outro auxilia e monitora), ambos saberem exatamente o que será feito (padronização de voo e briefings dos procedimentos a ser executados) e voar pelos instrumentos, não confiar no que os olhos veem momentaneamente. Assim é o voo IFR (regras de voo por instrumentos). A transição do voo por instrumentos para o voo visual numa aproximação para pouso não causa problema, pois o piloto espera exatamente avistar a pista à sua frente. Numa arremetida em que a pista não tenha sido avistada, a confiança nos instrumentos como guia absoluto da trajetória a ser voada é essencial. Se nesse momento o piloto avista parte da pista por entre as nuvens e tenta manter-se em voo visual, esse é o caminho mais curto para que se perca a consciência situacional. Essa é uma das possibilidades, mas é prematuro afirmar que tenha sido dessa maneira.

Pilotos que operam na base aérea de Santos e em outros aeroportos que dispõem apenas de NDB reclamam desse procedimento

  • É possível já descartar a hipótese de sabotagem ou atentado?
  • A priori nunca se descarta alguma coisa sem um mínimo de análise. Entretanto, é extremamente improvável ter havido sabotagem ou atentado. O avião completou o voo sem incidentes, nada havia de estranho ou pouco usual, conforme se nota pela fraseologia ouvida. O pouso só não ocorreu por decisão tomada naquele exato momento, não antes. Teorias de sabotagem ou atentado não resistem a uma análise superficial.
  • Pilotos relatam que o procedimento de aproximação na Base Aérea de Santos é crítico para jatos de alta performance, mas ninguém reclama porque seria o único disponível na região. A infraestrutura aeroportuária da Baixada Santista é adequada para receber jatos executivos em dias com mau tempo? Que tipo de tecnologia precisaria existir na região para tornar a operação mais segura?
  • A infraestrutura aeroportuária da Baixada Santista é extremamente limitada, sobretudo considerando que Santos não é uma pequena cidade do litoral paulista, mas parte da metrópole de São Paulo, sede do maior porto do país. Lá o único procedimento que existe é o Echo1, descida NDB. Não se pode dizer que seja inseguro, porém hoje existem descidas mais precisas, que permitem pousos com visibilidade e teto mais restritos com mais segurança, o que se imagina que deveria ser o caso para um aeroporto que serve a uma região logística da importância de Santos. Descidas baseadas em um NDB (rádio com antena no solo, um ponteiro no equipamento do avião aponta para onde está a antena), por não terem a precisão dos modernos equipamentos, permitem que a aeronave desça apenas para alturas mais elevadas do que as de outros procedimentos já em uso. Isso faz com que o aeródromo “feche” mais vezes, obrigando o avião a arremeter mais alto e levando o teto mínimo para números que poderiam ser melhores caso houvesse outro tipo de procedimento para a pista. Nem sempre a trajetória de aproximação final é exatamente alinhada com a pista de pouso. Tampouco a razão de descida é constante, podendo levar a um mergulho em direção à pista. A descida NDB na maioria dos casos hoje em dia é a última a ser utilizada. Em aeroportos mais movimentados existem nesta ordem: ILS (rampa eletrônica que orienta o avião até bem próximo ao pouso), RNAV (baseado em satélites), VOR (equipamento rádio no solo, com precisão maior do que o NDB) e NDB, já descrito acima. Desses, o RNAV dispensa equipamento de solo, pois se baseia em informações de satélites, não há custo de manutenção, uma vez homologado permanece utilizável por todas as aeronaves equipadas e certificadas, como a maioria atualmente e como o próprio avião acidentado. Todos os pilotos que operam nesse e em outros aeroportos que dispõem apenas de NDB reclamam, mas uma das características de nosso país é esperar acontecer para entender que existe o problema. A mentalidade reinante é sempre reativa, poucas vezes preventiva.
  • Por que até hoje não existe um procedimento RNAV para a base aérea de Santos ou outro aeródromo da região?
  • Difícil entender por que inexiste até hoje um procedimento RNAV para esse aeroporto, assim como para vários outros no Brasil. Se considerarmos sua localização e potencial de utilização, ao lado de um dos mais importantes portos do país, mais difícil ainda. Se levarmos em conta que na área de São Paulo não há um aeroporto que sirva de alternativa para um jato executivo (Congonhas, Guarulhos e Campinas não aceitam), aí então é que não há resposta aceitável. É um aeroporto utilizado como base aérea, mas há acordos que permitem a utilização por aeronaves civis. O procedimento RNAV é relativamente simples e extremamente preciso. Devido a suas características, o RNAV seria aplicável às duas cabeceiras da pista, nos dois sentidos, mesmo com a proximidade das elevações. Caso estivesse instalado, muitas arremetidas ou trajetórias para circular seriam evitadas. Além disso, por ser mais preciso, o aeroporto permaneceria bem menos tempo fechado. Ademais, um NDB sofre interferências magnéticas de formações meteorológicas nas proximidades, o que fragiliza ainda mais sua utilização. Um procedimento RNAV é isento de interferências. Por tudo isso, é difícil aceitar um aeroporto (na verdade, uma região) tão estrategicamente colocado e tão mal servido de apoios.
  • O piloto pode ter arremetido por não ter avistado a pista. Mas o pouso não era por instrumentos?
  • A aproximação, sim, por instrumentos, mas o pouso, não, seria visual. O piloto precisa avistar a pista para completar o pouso. No caso de Santos, a altitude mínima de decisão é de 215 m (700 pés). O que é diferente nos tipos de aproximação é onde o piloto deve avistar a pista: mais alto, mais longe, mais próximo, mais baixo. Os equipamentos a bordo e os auxílios no solo é que determinam o tipo de aproximação e estabelecem onde a arremetida se inicia. Quanto mais exata a informação que o piloto pode receber, normalmente mais perto da pista está o ponto da arremetida.
    Equipamentos sofisticados, não disponíveis no Brasil, levam o avião até o solo sem visibilidade nenhuma. Pode-se até perguntar então o motivo de não termos equipamentos semelhantes em todos os aeroportos. Pois bem, eles são caros, demandam manutenção e treinamento das tripulações e, pelo período de utilização, não seria viável tê-los. As condições meteorológicas no Brasil não exigem essas instalações. Aeroportos centrais, como Guarulhos, Congonhas, Brasília, Galeão, Confins e outros, dispõem de equipamentos satisfatórios para nossa realidade. Sempre poderiam ser melhores, mas nosso problema não está só aí. Faltam pistas e pátios de estacionamento. Enfim, gestores realmente capazes de compreender o que se passa com a infraestrutura aeroportuária e de navegação aérea do país, capazes de compreender que não se pode continuar a tentar fazer uma das maiores aviações do mundo funcionar como há 50, 60 anos.
  • O tipo de procedimento existente em SBST (NDB) não oferece risco adicional aos pousos com mau tempo? E a pista, é boa?
  • Podemos entender que sim, oferece. Mas esse tipo de procedimento deve ser utilizado sempre se observando suas limitações. Imagine um carro sendo dirigido numa rodovia com cinco pistas em cada direção. Agora imagine o mesmo carro numa estrada de mão dupla. Há risco adicional pela estrada não dispor de cinco pistas? Até podemos entender que haja, mas em se observando todas as regras e precauções, o risco estará mitigado a ponto de a viagem ser segura. O perigo sempre estará presente, mas a exposição ao perigo não deverá ocorrer sem que todas as precauções sejam tomadas a ponto de tornar o risco tão baixo que não interfira nos níveis de segurança. Então, um procedimento NDB por si só não traz riscos. Mas, ao se somar chuva e ventos variando de velocidade e direção, o quadro se torna mais complexo. Se inserirmos uma falha mecânica, a soma dos fatores poderá ultrapassar a capacidade de solução. A pista de Santos poderia ser bem melhorada. Tem dimensões que permitem o pouso de jatos executivos com segurança, mesmo sob a chuva. Para operação com água na pista, poderia haver grooving (ranhuras) para escoamento da água, o que aumentaria os níveis de segurança. Está em região montanhosa, deveria haver procedimentos mais precisos do que o NDB. Enfim, essa pista se insere num cenário conhecido de infraestrutura precária.

Visibilidade reduzida, teto baixo e chuva fraca podem influenciar em um acidente, mas não causá-lo

  • O trajeto de arremetida é igual para todos os tipos de aeronaves?
  • Sim, na maioria dos casos. Às vezes, existem diferenças por causa de velocidades muito diferentes entre um tipo e outro de avião. No caso de Santos, todas as aeronaves que arremeterem a partir daquele procedimento devem executar exatamente a mesma trajetória horizontal e vertical: curva à esquerda subindo para 1.220 m (4.000 pés) em direção ao bloqueio do auxílio rádio.
  • O que se pode falar sobre a velocidade da aeronave no momento da queda?
  • Próximo ao pouso a velocidade é mantida na mínima para a configuração do momento, respeitadas as margens de segurança. A ideia é pousar, desacelerar e parar, dissipando a energia. Numa arremetida, abandona-se o projeto de pouso, dando sequência ao voo seguindo o que dispõe a carta de aproximação e iniciando a aceleração para uma velocidade de espera ou alguma outra estabelecida na própria carta. A velocidade de pouso não é uma velocidade de manobra, é apenas para pouso. Por isso, ao iniciar a arremetida, há a aceleração. Tudo isso deve ser controlado pelo piloto, quer voando manualmente ou utilizando o piloto automático. Não há improviso, tudo está estabelecido. Evidente que no caso do acidente nem tudo ocorreu como previsto...
  • Qual a influência do mau tempo no acidente?
  • Mau tempo, por si só, não provoca acidente. Entretanto, fosse um dia ensolarado de céu azul, a história provavelmente seria diferente. Mas, de novo, o mau tempo por si só não tem o poder de provocar um acidente. Devemos entender o que é mau tempo. Existem vários tipos de nuvens que o provocam. Nuvens de trovoada, os famosos CB (cúmulos-nimbos), trazem turbulência severa, chuva forte de pancadas, fecham aeroportos por turbulência, por chuva, por visibilidade. São evitáveis, os radares as detectam. Nuvens estratificadas (stratus) são aquelas que encobrem tudo, trazem chuva nem sempre forte, ficam às vezes vários dias na região, e acompanham as frentes frias. Fecham aeroportos pela falta de teto e visibilidade, mas não trazem riscos adicionais, já que não apresentam turbulência ou ventos fortes. Classifica-se tudo como mau tempo, mas as consequências são diferentes. Em Santos, no dia do acidente, havia uma camada estratificada. Visibilidade e teto baixos, chuva fraca e algum vento. Essa situação com certeza tem influência num acidente, mas não o provoca. Influencia na medida em que introduz mais uma variável num ambiente já complexo: introduz a falta de visibilidade que pode provocar uma arremetida, que pode tornar o pouso inviável, que pode tornar aquela viagem improdutiva, que pode fazer, enfim, com que o objetivo não seja atingido, que é levar o passageiro a seu destino. São coisas que passam em segundos, mas que devem ser “brifadas” antes. Ambos os pilotos de um avião devem saber exatamente o que farão no futuro próximo em relação ao voo. As características meteorológicas não surgiram abruptamente, não mudaram em segundos. Elas estavam lá, eram conhecidas.
  • Seria aceitável uma decisão dos tripulantes de desistir da decolagem naquela manhã diante das circunstâncias? Se sim, por que os pilotos não o fizeram? Caberia discutir a influência que os operadores da aviação executiva exercem sobre os pilotos, em detrimento da segurança de voo?
  • Desistir da decolagem, talvez não, embora isso seja sempre possível. Mas as condições não obrigavam que se chegasse a isso, até porque a aproximação poderia ter sido feita sem o menor problema. A trajetória de arremetida existe exatamente para o caso de não ser possível o pouso por qualquer motivo, às vezes, até com tempo bom. Em casos semelhantes, ao decidir não pousar, simplesmente se executa a arremetida, permanece algum tempo voando em espera (se há previsão de que as condições melhorem) ou voa-se para o aeroporto de alternativa. Quanto à influência exercida sobre os pilotos, seria mais do que isso, é pressão mesmo. Em geral, até pressão autoimposta pelo tripulante. Imagine casos semelhantes: um piloto levando um astro para um megaevento, levando um político para uma cerimônia na qual ele é figura indispensável, levando o pai da noiva, a própria noiva, levando um médico para salvar vidas. Ou simplesmente levando o dono do avião ou helicóptero para o litoral num feriado prolongado. Já houve pilotos que perderam o emprego por se recusarem a decolar devido às condições meteorológicas no cruzamento da serra para o litoral. E também já aconteceram inúmeros acidentes pelo mesmo motivo: decolar para o litoral com a serra e a região fechada por meteorologia. Absolutamente não se pode afirmar que no caso em questão tenha havido qualquer tipo de influência ou pressão por parte dos passageiros. Ninguém sabe. A verdade é que a própria situação já exerce. E se alguém afirmar que isso não existe, desconhece o ambiente, ou porque a ele não é afeito, ou porque nunca precisou estar em situação semelhante. Há, contudo, um fator que poderia ter exercido mais ou menos pressão sobre a intenção dos pilotos pousarem em Santos, mesmo eventualmente em detrimento de limitações maiores: qual teria sido o aeroporto indicado no plano de voo, na saída do Rio de Janeiro, como aeroporto de alternativa a Santos? O volume de restrições impostas à aviação geral é muito grande hoje em dia, sendo a maior parte delas fruto da incapacidade de gestão de quem tem autoridade para isso. O aeroporto de alternativa a Santos, caso o pouso ali não fosse possível, seria uma péssima alternativa em termos logísticos para os passageiros. Vejamos: Congonhas seria a alternativa lógica. Na impossibilidade de pousar em Santos, os pilotos prosseguiriam para São Paulo. Com uma ou duas horas de atraso, os passageiros chegariam a Santos. Mas é proibido alternar Congonhas. Restariam como alternativas tecnicamente apropriadas, pois operam por instrumentos, Guarulhos, São José dos Campos e Campinas. Todas elas ofereceriam plena tranquilidade para a aproximação e pouso daquela aeronave, com aqueles pilotos, naquela condição meteorológica. Porém, em termos logísticos para os passageiros, é muito provável que a viagem a Santos fosse cancelada. Há que se considerar, no entanto, que em todos esses aeroportos também há restrições para as operações de aeronaves da aviação geral. Restrições por slot (operação apenas com horário marcado com grande antecedência) de tráfego aéreo ou de pátio. Sobrariam, na Grande São Paulo, aeroportos que não operam por instrumentos, tais como Jundiaí, Sorocaba ou Amarais, em Campinas. Se os pilotos estabelecessem como padrão não alternar para um lugar desprovido de procedimento IFR, então, na prática, eles teriam que voltar para o Rio de Janeiro. Mais problemas, pois talvez não pudessem voltar para o aeroporto Santos Dumont, que também tem restrições para o pouso de aeronaves da aviação geral. Restaria o aeroporto do Galeão. Voltando para a construção do quadro desse acidente, dependendo do aeroporto de alternativa que foi indicado no plano de voo original, o Cenipa poderá avaliar riscos à segurança diante das más alternativas oferecidas hoje em dia para quem faz um voo do Rio para Santos. Quanto desse cenário pode ter afetado a decisão dos pilotos em, eventualmente, tentar se aproximar de Santos comprometendo de alguma forma limites de segurança?

Os pilotos sabem que estão cansados. Sabem, reclamam, mas, em muitos casos, a necessidade do emprego fala alto

  • A fadiga dos pilotos tem se revelado um fator contribuinte importante em acidentes aeronáuticos. Esse acidente poderia ser usado como ponto de partida para um debate sobre os riscos da fadiga também na aviação executiva?
  • Sem afirmar que a fadiga tenha exercido papel fundamental no episódio, sim, cabe uma discussão sobre o assunto. Até porque o mundo se debruça sobre isto: as modernas legislações sobre jornada de trabalho do aeronauta estão calcadas no quesito fadiga. A influência por ela exercida em vários acidentes hoje é reconhecida e aceita como preponderante. Várias situações inexplicáveis encontraram luz na fadiga, a aviação comercial já trabalha com esse dado. A aviação executiva poderia utilizar todo o material já disponível sobre o assunto para melhorar seus índices. Mas, se não vier como legislação, obrigatória, dificilmente haverá êxito. Difícil conscientizar os próprios pilotos. Isso não significa que os pilotos não saibam que estão cansados. Sabem, reclamam, mas, em muitos casos, a necessidade de manutenção do emprego fala alto. Em grandes companhias já existe a conscientização de que o problema é sério, as escalas de trabalho são monitoradas quanto à fadiga, as empresas entendem que o risco não é aceitável. Recentemente, foi aprovada legislação que obriga caminhoneiros ao descanso em intervalos regulares. Ora, isso nada mais é do que o reconhecimento da fadiga que pode atingir os profissionais. Alguém consegue afirmar que com pilotos o mundo seria diferente, sem fadiga?
  • Pilotos que já voaram Excel dizem que esse jato da Cessna é mais desafiador do que qualquer outro avião executivo durante decolagens e arremetidas, ou seja, por questões aerodinâmicas, requer mais atenção e esforço. Também falam sobre a tendência de queda de nariz diante do recolhimento do flap em velocidade indevida. O que é possível dizer sobre isso independentemente das investigações do Cenipa?
  • Cada avião tem suas particularidades. Não existe avião mais difícil ou mais fácil. Todos têm seu grau de dificuldade que os pilotos devem conhecer. Para isso, precisam basicamente de treinamento. É comum pilotos voarem uma vida sem jamais treinarem emergências, sem jamais se submeterem a situações adversas em ambiente de treinamento. Isso faz com que, eventualmente, a única vez que enfrentam uma situação crítica seja aquela que leva a um acidente. O Citation Excel e seus sucessores XLS e XLS+ são uma linha de sucesso na aviação executiva, e se derivaram da junção das asas da série Citation V Ultra com a fuselagem das séries III e VII. Com potentes motores, o resultado foi o conforto de uma cabine “stand-up”, com a capacidade de operar em pistas curtas e uma performance de subida exemplar. O Excel é tido também como uma aeronave de profundor pesado, exigindo bastante força e o uso intenso do compensador de arfagem. Em decolagem e arremetida, por exemplo, a tendência de subir o nariz é bastante acentuada. Justamente para auxiliar o piloto nas transições entre velocidades baixa e alta, e também nas mudanças de configuração de flaps, o Excel foi dotado de um estabilizador horizontal móvel, de duas posições: a primeira ativa quando os flaps estão na posição 0 grau enquanto a segunda é ajustada sempre que a alavanca de comando dos flaps é selecionada além de 0 grau. Em aproximadamente 25 segundos, segundo o manual da aeronave, esta transição entre posições se completa. A dinâmica destes ajustes, ao feeling do piloto, é um tanto peculiar e pouco natural: após compensar intensamente em direção a “nose down” e finalmente neutralizar os esforços, mantendo-se próximo da V2, na retração de flaps o movimento se inverte, exigindo esforço intenso de cabrada e retrimagem contrária, pois a tendência de baixar o nariz com o reajuste da posição do estabilizador é bastante pronunciada. Esse cenário fica particularmente desconfortável caso a retração de flaps ocorra em alta velocidade, especialmente logo abaixo dos 200 nós indicados. O piloto terá utilizado boa parte do seu curso de compensador no sentido “nose down” para manter os esforços no manche neutralizados e, no momento da retração dos flaps, experimentará a somatória desta compensação com o reposicionamento do estabilizador. Informalmente pilotos desse tipo de aeronave já reportaram terem sido pegos de surpresa por situações semelhantes, experimentando perdas de altitude significativas até que o compensador de arfagem pudesse ser reposicionado cabrado. No entanto, qualquer característica da máquina deve ser de conhecimento de seu piloto. Conhecidas e treinadas, deixam de ser dificuldades, passam a ser características. Isso vale para qualquer situação. Nada na operação de uma aeronave pode existir sem que seu piloto esteja consciente de que será daquela maneira. Inclusive a arremetida, que nada mais é do que uma continuação do voo após uma trajetória de procedimento para pouso. Quando uma aproximação final não está totalmente estabilizada com a aeronave completamente pronta para o pouso, o piloto tem a obrigação de arremeter. E essa fase do voo é uma manobra normal, sem sobressaltos, sem correria, sem improvisos. Apenas cumprir o que está escrito na carta de aproximação por instrumentos para efeito de trajetória e cumprir o que está escrito nos manuais da aeronave para efeito de operação de voo. A arremetida do Cessna XL está descrita em seus manuais, passo a passo, assim como de outras aeronaves, cada uma com suas características. Podemos até aceitar que determinado comportamento do avião exerça influência em algum momento de forma diferente de outro modelo de aeronave. Mas não podemos aceitar que isso venha a ser fator determinante de um acidente porque tal comportamento não aparece subitamente, não é um elemento surpresa. Fosse assim, estaríamos sempre dependentes do imponderável. E a aviação não depende do imponderável.
  • Pode ter havido alguma falha que dificultasse a manutenção do voo durante a arremetida?
  • Sempre é possível. A ocorrência de uma falha nunca pode ser descartada. Uma das características desse modelo de avião, a de proporcionar um movimento de baixar o nariz após decolagem ou arremetida com o recolhimento do flap, tem sido bastante comentada, inclusive com a existência de dispositivo inibidor desse movimento descendente, exatamente porque é uma situação que pode ultrapassar níveis normais de segurança. Caso esse dispositivo tenha falhado, a proteção por ele proporcionada estaria ausente, o que poderia levar a uma situação mais difícil de recuperação. Mesmo assim, a eventual falha de algum dispositivo de proteção deve fazer parte de um programa de treinamento. Claro que eventual falha aumenta a complexidade da operação, mas pilotos jamais podem ser surpreendidos por uma situação que possa colocar o voo em risco a ponto de se tornar incontrolável. Um acidente nunca é resultado de apenas um fator. Sempre é uma somatória, uma confluência de situações que fazem com que a irreversibilidade seja atingida. Então, algumas coisas começam a criar corpo: tempo encoberto, procedimento apenas NDB em área com elevações, características do avião, dispositivos que podem ter falhado, algum nível de fadiga, a vontade de chegar, o tempo transcorrido desde a última vez que os pilotos tiveram treinamento de emergências em simuladores, caso tenham recebido, eventual perda de consciência situacional. Como na teoria dos dominós ou do queijo suíço, apenas um dos fatores dificilmente provoca um acidente, mas a última peça do dominó pode cair ou podem se alinhar todos os furos das fatias de queijo ao se juntar vários deles.

Precisamos melhorar nosso sistema de controle de tráfego aéreo, torná-lo mais voltado ao usuário e suas necessidades

  • Como é possível que o gravador de voz da cabine não tenha registrado as conversas durante o fatídico voo do último dia 13?
  • É possível que não tenha registrado mais conversas, de mais voos, não apenas as desse. Ainda não sabemos quando o equipamento deixou de gravar. Deveria estar gravando, mas não era isso que acontecia. A investigação encontrará a data da última gravação. Estes equipamentos, o CVR e o DFDR, são obrigatórios em aeronaves da aviação comercial – obrigatoriedade que se estende parcialmente às outras aeronaves. Seja como for, a inoperância de um gravador não provoca um acidente. Claro que deve gravar, mas a não gravação não é um fator que provoque uma situação anormal, incidente ou acidente.
  • Como podemos melhorar os índices de acidentes da aviação geral?
  • Precisamos investir em prevenção. Isso abrange uma série de itens, mas muito já se investiu em prevenção no âmbito da aviação comercial e esse esforço teve bons resultados, derrubou os índices de acidentes. Precisamos aprender a utilizar na aviação geral o material e o conhecimento existentes, precisamos ter programas sólidos de treinamento. Precisamos melhorar nosso sistema de controle de tráfego aéreo, torná-lo mais voltado ao usuário e suas necessidades e menos ao sistema em si. Ao lado disso, investir em infraestrutura. Tomando como exemplo esse acidente, caso existisse um procedimento RNAV em Santos, a história poderia ter sido outra, quem sabe? Somos carentes de infraestrutura e aquela que temos não é usada racionalmente. Uma frase é bem conhecida por quem trabalha com prevenção de acidentes: “Se você acha caro investir em prevenção, tente um acidente”. Estamos muito atrasados nesse assunto. Precisamos entender que prevenção de acidentes não é custo, é investimento. Treinamento não é apenas para cumprir um requisito, mas para manter os níveis de proficiência sempre no mais alto padrão. Temos o hábito no Brasil de trabalhar reativamente, sempre reagindo a um acontecimento. Precisamos aprender a nos antecipar, a trabalhar de forma preventiva, a cercar os perigos. De pouco adiantam os discursos no calor dos fatos. Além de tudo, soam falsos. O trabalho de prevenção não aparece, às vezes, só notamos que existe quando falha. E quando falha costuma ser da forma mais violenta possível. Se não trabalhamos na prevenção, ficamos de torcedor, esperando que nada aconteça. E, quando acontece, a primeira corrida é em busca de culpados. Normalmente, os responsáveis estão bem longe do cenário.
  • O que se pode fazer para que o próximo acidente não aconteça?
  • Antes de tudo, devemos acreditar (e temos motivo para isso) que o Cenipa faça a sua parte. É um fato que o tempo até a publicação final de um relatório sobre um acidente não é curto. Quanto mais informações sólidas a respeito do acidente forem analisadas e divulgadas, no tempo apropriado, melhor para a segurança e para que acidentes como esse não se repitam. Esse é o aspecto técnico. Mas há questões que vão além do aspecto técnico. Houve um acidente seríssimo, com uma aeronave moderna, tripulação qualificada, dentro da Área Terminal de São Paulo, no aeroporto que serve ao mais importante porto do Brasil, num dia em que as condições meteorológicas não eram perfeitas, mas estavam dentro da normalidade para o voo que terminou nesse trágico acidente. Deveria ser muito preocupante para o Brasil se as autoridades máximas dos transportes e da aviação não estivessem pensando ou repensando em muita coisa a respeito da forma como o setor está sendo gerenciado. Passa da hora de se compreender que a aviação é um setor complexo, onde devem conviver diferentes segmentos. A aviação comercial é só um deles, muito importante, mas parte de um sistema maior. A total falta de políticas públicas, de Estado, para a nossa aviação é evidente e pode ter deixado, sim, impressões digitais nessa tragédia. A nossa aviação tornou-se grande, heterogênea, complexa demais para ser levada a tão baixa velocidade, reagindo tão vagarosamente às novas tecnologias que estão disseminadas no mundo todo há tanto tempo. Independentemente do que o relatório final desse acidente revelar, as autoridades deveriam estar agindo de forma inteligente, incentivando a modernização da frota brasileira (e não burocratizando a vida de quem se moderniza), dando ênfase à disseminação de procedimentos baseados em GPS e especialmente ao treinamento de pilotos. Hoje é praticamente impossível um proprietário de aeronave de pequeno porte modernizar seu equipamento de bordo, tamanha a burocracia e entraves. Um piloto não é autorizado a realizar simples procedimentos IFR baseados em GPS (que na enorme maioria dos casos são muito mais simples do que os procedimentos convencionais), porque a autoridade demora a emitir um papel de eficácia e necessidade duvidosas. O que acontece é que a realidade tem deixado a legislação completamente defasada e a fiscalização confusa. Continuamos tentando encaixar a aviação do século 21 numa infraestrutura do começo do século passado. Isso vai continuar não dando certo.
  • O avião é homologado para uso privado. É possível considerar que houve ali transporte aéreo clandestino? E o que é possível dizer sobre o imbróglio envolvendo a propriedade da aeronave?
  • São questões que merecem uma análise jurídica e uma avaliação criteriosa das autoridades, que devem gerar debates, inclusive em relação ao seguro, mas, a rigor, não teriam qualquer influência no acidente ou nas características do voo.

Por Giuliano Agmont
Publicado em 01/09/2014, às 00h00


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